segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Música, propriedade de todos

Música é algo incrível. Todos têm (eu diria) um carinho especial por esta forma de arte. Todos gostam de cantar, mesmo que seja só quando estão muito felizes ou bêbados. Todos querem fazer parte disso. E, mesmo que alguém não goste de cantar, muito provavelmente gosta de ouvir música.
Também é comum chorar ouvindo uma música. Ficar triste, com saudade; ou alegre, lembrar de uma situação feliz. Talvez a música seja muito especial exatamente por isso; porque todos estão ligados a ela. Ninguém vive sem a presença desta, praticamente todos os dias. No rádio, no canto do vizinho, no som daquela festa ao lado de sua casa exatamente quando você tenta dormir (a música a qual somos expostos nem sempre é aquela que queremos ouvir). Mas é importante para todos, sem dúvidas (mesmo que se negue isso).
Para quem trabalha com música então, esta importância consegue ser maior; pode ser multiplicada por 1.000. Há uma relação mais íntima ainda, pois a música é o sustento e a realização, além da (espera-se) diversão. Não há dúvidas de que aqueles que estão no meio da música, trabalhando com isso, envolvidíssimos, têm um grande mérito e, a princípio, entendem mais do assunto do que qualquer um dos que apenas curtem ouvir um som. E é claro que, a princípio, entendem mais do assunto do que aqueles que tocam apenas amadoristicamente. De forma geral, podem ter orgulho de discorrer sobre o tema que é assunto/pensamento/foco/prioridade em suas vidas 24 horas por dia. Mas quando esta grande intimidade, este grande mérito, se torna um sentimento de posse, a certeza de um domínio exclusivo, me sinto na obrigação de falar algo: a música é propriedade de todos.
Infelizmente (?), a música é algo com o qual TODOS NÓS temos uma relação. Uma bela memória afetiva. Todos nós fomos a muitos shows, todos nós já ouvimos zilhões de canções na vida. Todos nós a entendemos – cada um à sua maneira. Mas é preciso engolir este fato: música é para todos. Não há excluídos, pois o mundo inteiro sabe o que é isso, música. Todos estão dentro deste lance. A música é das igrejas. Dos centros de umbanda. Dos contadores de história. Das pessoas que cantam com a letra errada. Dos pacientes da musicoterapia. Dos bebês dormindo ao som das cantigas. Daqueles que mal sabem escrever, mas cantam muito bem. Das donas de casa inventando músicas para se distrair. A realidade dura para os autodenominados proprietários da música é essa: todos nós somos “da música”. Xi! Ferrou! Agora ninguém é mais tão especial assim. Muitas pessoas sabem compor. As crianças, então, mais ainda. Todos nós vamos ao videokê e nos sentimos no direito de cantar. (Aliás, ir no videokê e cantar direito é quase que errado. Não pode. Tem que cantar tranquilo, errando quase todas as notas, de preferência.) “Adoro cantar”, “Quero ser cantora”, “Quase fui cantor, sabia?”, “Todos dizem que tenho a voz boa”, “Todos ficaram impressionados quando cantei naquele teste”. Tudo verdade. Mesmo que só na imaginação; não importa. As pessoas só dizem este tipo de coisa porque a música permite, é aberta a isso. Todos se sentem parte da música, e com razão.
Este sentimento é incrível e não deve ser ridicularizado. Claro que eu mesma nunca (mais) vou deixar que alguém que nem conheço invada o palco de algum show meu para cantar qualquer coisa, só porque ficou com vontade. Vai ter de segurar a vontade, e principalmente lembrar que respeito é para ser usado. Mas o fato de vários bêbados já terem tentado cantar na marra em algum show meu, ou o fato de várias pessoas sem noção terem tirado algum instrumento (geralmente de percussão) para acompanhar as músicas que eu cantava, estragando a canção do início ao fim, só reforça esta verdade dura de engolir: a música é propriedade de todos.  
Mesmo que eu ache estranho aquela pessoa criticar um dos maiores acordeonistas do mundo sem nem ao menos conseguir explicar o que está criticando, devo admitir que ele está falando sobre algo que sente (afinal, música se ouve e sente, certo?). Mesmo que aquela diretora de teatro não saiba nem perceber a própria desafinação, quando ela diz “meu ouvido não me engana” certamente não está falando isso por ser louca, e sim porque o ouvido dela não a engana, mesmo. Ela só não consegue ser afinada, mas talvez de fato tenha um bom ouvido. Mesmo quando aquela dona de boteco diz “de música eu entendo”, é interessante considerar a possibilidade daquilo ser verdade. Apenas não canta, não toca, oras; mas ouve, e muito. E, aliás, tem muito bom gosto.
Acredito que a arrogância, essa coisa lamentável que nos impede de crescer, de ouvir, de trocar, de aprender com o outro, faz com que nós, que trabalhamos com músicas, não atinemos para o fato de que vivemos disso (ou complementamos nossa renda com isso) graças à existência de todas estas pessoas que fazem parte da música como ouvintes e apreciadores.
Sabem por que escrevi este texto? É claro que me inspirei nos já citados autodenominados proprietários da música. Mas, antes de qualquer coisa, já me peguei vez ou outra censurando mentalmente alguém que não era do meio musical e dizia saber muito sobre o assunto. Detectada minha arrogância, comecei a matutar e cheguei à conclusão de que precisava escrever sobre isso para me entender melhor e exorcizar qualquer resquício de “propriedade” sobre a música que existisse dentro de mim. Além de não querer me transformar em um dos pseudoproprietários que tanto critico (e que tanto vejo por aí, afastando de si pessoas legais, afastando convívios riquíssimos com pessoas de outras culturas / outros pensamentos), não quero perder o olhar do outro, principalmente se este outro for “leigo”. A opinião do leigo pode ser por vezes risível, mas pode ser também valiosa. O olhar do outro é o “olhar privilegiado”, disse o Julio Adrião. Não quero perder a oportunidade de saber algo sobre mim que só o outro enxerga. Se ele disser algo absurdo / irritante, discordo numa boa. 
Este texto não é um manifesto contra o estudo da música. Pelo contrário. Quando estudei música me senti muito mais segura; tive muito mais ferramentas para estudar melodias, cantar em coro, ler partituras. Só ganhei. Jamais seria contra isso. Mas acho que esse é mais um dos paradoxos da vida: quanto mais se sabe, mais se tem a certeza de que nada se sabe; mais se tem a noção da imensidão das coisas e da quantidade de coisas para aprendermos. Nunca teremos conhecimento sobre um milésimo do que existe. Quanto mais se sabe, mais se tem a certeza de que esta busca pelo saber é constante. E esta consciência nos aproxima dos outros, nos torna mais humildes e mais dispostos a aprender. 


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