Música é algo incrível. Todos têm (eu diria) um carinho especial por esta forma
de arte. Todos gostam de cantar, mesmo que seja só quando estão muito felizes
ou bêbados. Todos querem fazer parte disso. E, mesmo que alguém não goste de
cantar, muito provavelmente gosta de ouvir música.
Também é
comum chorar ouvindo uma música. Ficar triste, com saudade; ou alegre, lembrar
de uma situação feliz. Talvez a música seja muito especial exatamente por isso;
porque todos estão ligados a ela. Ninguém vive sem a presença desta,
praticamente todos os dias. No rádio, no canto do vizinho, no som daquela festa
ao lado de sua casa exatamente quando você tenta dormir (a música a qual somos
expostos nem sempre é aquela que queremos ouvir). Mas é importante para todos, sem dúvidas (mesmo que se negue
isso).
Para
quem trabalha com música então, esta importância consegue ser maior; pode ser
multiplicada por 1.000. Há uma relação mais íntima ainda, pois a música é o
sustento e a realização, além da (espera-se) diversão. Não há dúvidas de que
aqueles que estão no meio da música, trabalhando com isso, envolvidíssimos, têm
um grande mérito e, a princípio, entendem mais do assunto do que qualquer um
dos que apenas curtem ouvir um som. E é claro que, a princípio, entendem mais
do assunto do que aqueles que tocam apenas amadoristicamente. De forma geral,
podem ter orgulho de discorrer sobre o tema que é
assunto/pensamento/foco/prioridade em suas vidas 24 horas por dia. Mas quando
esta grande intimidade, este grande mérito, se torna um sentimento de posse, a
certeza de um domínio exclusivo, me sinto na obrigação de falar algo: a música
é propriedade de todos.
Infelizmente
(?), a música é algo com o qual TODOS NÓS temos uma relação. Uma bela memória
afetiva. Todos nós fomos a muitos shows, todos nós já ouvimos zilhões de
canções na vida. Todos nós a entendemos – cada um à sua maneira. Mas é preciso
engolir este fato: música é para todos.
Não há excluídos, pois o mundo inteiro sabe o que é isso, música. Todos estão
dentro deste lance. A música é das igrejas. Dos centros de umbanda. Dos
contadores de história. Das pessoas que cantam com a letra errada. Dos
pacientes da musicoterapia. Dos bebês dormindo ao som das cantigas. Daqueles
que mal sabem escrever, mas cantam muito bem. Das donas de casa inventando
músicas para se distrair. A realidade dura para os autodenominados
proprietários da música é essa: todos nós somos “da música”. Xi! Ferrou! Agora
ninguém é mais tão especial assim. Muitas pessoas sabem compor. As crianças,
então, mais ainda. Todos nós vamos ao videokê e nos sentimos no direito de
cantar. (Aliás, ir no videokê e cantar direito é quase que errado. Não pode.
Tem que cantar tranquilo, errando quase todas as notas, de preferência.) “Adoro
cantar”, “Quero ser cantora”, “Quase fui cantor, sabia?”, “Todos dizem que
tenho a voz boa”, “Todos ficaram impressionados quando cantei naquele teste”.
Tudo verdade. Mesmo que só na imaginação; não importa. As pessoas só dizem este
tipo de coisa porque a música permite, é aberta a isso. Todos se sentem parte
da música, e com razão.
Este
sentimento é incrível e não deve ser ridicularizado. Claro que eu mesma nunca
(mais) vou deixar que alguém que nem conheço invada o palco de algum show meu
para cantar qualquer coisa, só porque ficou com vontade. Vai ter de segurar a
vontade, e principalmente lembrar que respeito é para ser usado. Mas o fato de vários bêbados já terem tentado cantar
na marra em algum show meu, ou o fato de várias pessoas sem noção terem tirado
algum instrumento (geralmente de percussão) para acompanhar as músicas que eu
cantava, estragando a canção do início ao fim, só reforça esta verdade dura de
engolir: a música é propriedade de todos.
Mesmo
que eu ache estranho aquela pessoa criticar um dos maiores acordeonistas do
mundo sem nem ao menos conseguir explicar o que está criticando, devo admitir
que ele está falando sobre algo que sente (afinal, música se ouve e sente, certo?). Mesmo que aquela diretora de teatro não saiba nem
perceber a própria desafinação, quando ela diz “meu ouvido não me engana”
certamente não está falando isso por ser louca, e sim porque o ouvido dela não
a engana, mesmo. Ela só não consegue ser
afinada, mas talvez de fato tenha um bom ouvido. Mesmo quando aquela dona de
boteco diz “de música eu entendo”, é interessante considerar a possibilidade
daquilo ser verdade. Apenas não canta, não toca, oras; mas ouve, e muito. E,
aliás, tem muito bom gosto.
Acredito
que a arrogância, essa coisa lamentável que nos impede de crescer, de ouvir, de
trocar, de aprender com o outro, faz com que nós, que trabalhamos com músicas,
não atinemos para o fato de que vivemos disso (ou complementamos nossa renda
com isso) graças à existência de todas estas pessoas que fazem parte da música
como ouvintes e apreciadores.
Sabem
por que escrevi este texto? É claro que me inspirei nos já citados
autodenominados proprietários da música. Mas, antes de qualquer coisa, já me
peguei vez ou outra censurando mentalmente alguém que não era do meio musical e
dizia saber muito sobre o assunto. Detectada minha arrogância, comecei a
matutar e cheguei à conclusão de que precisava escrever sobre isso para me
entender melhor e exorcizar qualquer resquício de “propriedade” sobre a música
que existisse dentro de mim. Além de não querer me transformar em um dos pseudoproprietários que tanto critico (e que
tanto vejo por aí, afastando de si pessoas legais, afastando convívios
riquíssimos com pessoas de outras culturas / outros pensamentos), não quero
perder o olhar do outro, principalmente se este outro for “leigo”. A opinião do
leigo pode ser por vezes risível, mas pode ser também valiosa. O olhar do outro
é o “olhar privilegiado”, disse o Julio Adrião. Não quero perder a oportunidade
de saber algo sobre mim que só o outro enxerga. Se ele disser algo absurdo /
irritante, discordo numa boa.
Este
texto não é um manifesto contra o estudo da música. Pelo contrário. Quando
estudei música me senti muito mais segura; tive muito mais ferramentas para
estudar melodias, cantar em coro, ler partituras. Só ganhei. Jamais seria
contra isso. Mas acho que esse é mais um dos paradoxos da vida: quanto mais se
sabe, mais se tem a certeza de que nada se sabe; mais se tem a noção da
imensidão das coisas e da quantidade de coisas para aprendermos. Nunca teremos
conhecimento sobre um milésimo do que existe. Quanto mais se sabe, mais se tem
a certeza de que esta busca pelo saber é constante. E esta consciência nos aproxima dos outros, nos torna mais humildes e mais dispostos a aprender.
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