quinta-feira, 28 de maio de 2015

Aconteceu (e não virou manchete)

No final de 2013 fui ao show de uma amiga, cantora e compositora, no Sergio Porto. O show foi incrível. Eu e meu namorado ficamos impressionados com suas canções, sua presença de palco, sua voz... Tudo.
Saímos pelo Humaitá conversando sobre aquela experiência tão legal. Comentávamos sobre o talento de nossa amiga quando eu disse que ela ainda seria muito reconhecida, sem dúvidas, pois era boa demais.
A resposta do Alex foi mais ou menos isso: "Mas não acho que a gente deva pensar em seu reconhecimento como algo futuro. Ela já está acontecendo, não tem isso de esperar por algo. Ela já está construindo sua história. Já está sendo ótimo." A partir daí, refleti e mudei minha visão. Realmente, não. Ela não é uma promessa, e sim um fato, algo concreto. Está aqui, agora, criando arte da melhor qualidade, fazendo uma ótima contribuição para a sua época. 
              Gostei muito deste pensamento exposto pelo Alex: focar no tempo presente e na valorização daquilo que está sendo feito (pelos outros e por você, também).
Colocar expectativas demais no futuro muitas vezes acaba minimizando o valor do que se faz agora, do que já se tem. E isso é criminoso, porque  um show como aquele que eu vi demanda muito tempo de pré-produção. É preciso organizar os horários dos ensaios, ensaiar, colocar as músicas no papel, fechar os arranjos, divulgar o show o máximo possível, pensar nas participações, chegar horas antes para passar o som e resolver questões técnicas... E o resultado foi: casa lotada, apresentação linda. Ou seja, não valorizar esta grande vitória, este importante passo na carreira de um artista independente, não faz nenhum sentido.
O reconhecimento de grandes veículos, o auxílio financeiro de uma gravadora, o apadrinhamento de um grande nome da música; tudo isso seria maravilhoso e merecido. Mas, se não está acontecendo, não invalida o fato de que minha amiga e tantos outros artistas que conheço estão atuando, estão fazendo deste momento em que vivemos um momento muito rico artisticamente. A culpa desta efervescência toda é exatamente deles, que criam e depois se esforçam para que este trabalho chegue até nós, no conforto de nossos computadores ou aparelhos de CD, ou sentados na cadeira do Sergio Porto, só nos deixando embalar pela música audaciosa que eles fazem. 
Costumamos dizer que alguém aconteceu quando alcançou o sucesso. Acredito que temos que mudar nosso conceito de sucesso e de acontecer. Acontecer é estar em atividade, na minha opinião. Fazer todo este esforço para colocar em prática esta grande paixão que é a música (neste caso específico).
Continuo desejando, sempre, muito sucesso (o tradicional, mesmo) para ela e para todos os artistas que conheço e admiro, que são muitos. Mas não acredito mais que isso acontecerá apenas quando muita gente souber destes artistas, só depois de muito reboliço, depois de muito auê merecido. Vejo que naquela noite, em que ela brilhou e mostrou a todos suas composições inusitadas, descontraídas, alegres, intensas, o sucesso se fez. Ela tocou meu coração e certamente o da maioria das pessoas que ali estavam, também.
Aconteceu.

domingo, 17 de maio de 2015

Ser o que se é

Lembro que quando tinha uns 12 anos adorava ver MTV. Passava tardes e tardes vendo milhares de clipes e conhecendo muitos artistas, principalmente bandas de rock. Minha irmã também amava (e ama) música, e me acompanhava dividindo o sofá ou o chão enquanto assistíamos Gás totalLado B...
Uma cena específica me veio à mente: certa tarde estávamos vendo o vídeo de alguma canção (não me recordo o nome) onde um grupo (não me recordo qual) se apresentava ao vivo. Vi as duas backing vocals do grupo cantando, extrovertidas e cenicamente bem expressivas. Eu disse: “Ai, por que é que sempre que tem uma mulher em uma banda ela tem que ser ou cantora ou backing vocal?”
(Não vou entrar aqui na questão do meu machismo, infelizmente existente já tão novinha. Quero abordar, por ora, outra questão. O tópico machismo vai voltar, até mesmo porque necessito falar sobre ele.)
Minha irmã, entendendo imediatamente o recalque, respondeu à minha pergunta: “Ué, fazer o que se elas são abençoadas por Deus e sabem cantar?” Tentei discordar, mas já era tarde. Eu havia sido desmascarada. Queria era estar ali, no lugar delas. Sem tocar nenhum instrumento que não minha voz. Queria cantar e ser expressiva, descontraída, mostrar aquilo que eu, aos 12 anos, já amava fazer: cantar.
Mas eu não assumia muito isso. Fui aprender a tocar guitarra. Queria ser instrumentista. Achava que cantar era algo “fácil” – e não sei por que cargas d’água achava que ter esta facilidade era algo um pouco menos digno de admiração do que ser instrumentista. Só porque era fácil para mim?
O fato é que sempre percebi que era afinada. Quando brincava sozinha e cantava ao mesmo tempo (jogando bola ou andando de bicicleta), via que minha voz era agradável, e que aquilo não era uma dificuldade para mim. Mas por que, então, eu menosprezava minha facilidade, ou dom, ou talento? Por que eu valorizava muito mais o que eu não tinha, o que não sabia? Porque eu considerava que quem “só” cantava não estava fazendo uma grande coisa?
Mal sabia eu a quantidade de poeira que ainda teria que comer para me tornar de fato uma cantora. Se soubesse, talvez respeitasse de cara todos os cantores que apareciam naqueles clipes que eu adorava.
É, acho que é isso: eu ainda não sabia que poderia melhorar, e muito, o meu canto – com aulas, preparação vocal; pensando qual seria meu conceito, o que de fato ficaria bem em minha voz, o que eu queria passar para os outros ao cantar e mais 8.956.733 fatores fundamentais para os cantores profissionais. Achava que aquilo ali estava “resolvido”.
(Sim, tão resolvido que eu não tinha nem coragem de cantar.)
Talvez a psicologia possa explicar isso. Fazendo uma  suposição, creio que tenha a ver com esta dificuldade comum em assumirmos o que fazemos com todo o nosso coração. Assumir mesmo, o que quer que seja. Ser veterinário, comerciante, professor, palestrante, político. Para o tipo de pessoa que sou, foi difícil assumir: sou cantora. Ainda é. Meu primeiro texto aqui no blog fala sobre isso. Considero que me assumi cantora, mesmo, somente em 2011, mesmo cantando desde 2000 (16 aninhos). Só há pouquíssimo tempo isso foi sendo assumido, e vez ou outra dá vontade de fugir e fazer outra coisa que não pegue meu coração com tanta força. Dá medo de se machucar ao se entregar, digo isso de cadeira. Não é fácil assumir aquilo que se é.
Aliás... pensamos muito na dor que vem no pacote quando nos entregamos àquilo que mais amamos. Porém, nunca pensamos na frustração que é não fazermos o que mais amamos (dor aparentemente menor, mas perene). Sim, se entregar é se machucar. Mas e o prazer que traz esta atitude corajosa? E a sensação de realização?
Parece que gostamos de dificultar, né? Pensemos: ora, se existem coisas nas quais sou boa, por que deixá-las de lado? Eu, hein! É gostar muito de dificuldade...
Muitos anos depois fui conhecer uma faceta bem desagradável de alguns instrumentistas (graças a Deus, não todos), que é a mania feia de não respeitar quem “só” canta. Isso é algo que pode minar a autoestima de muitos intérpretes. Mas o mais importante é que o cantor, desde sempre, saiba o valor daquilo que faz. Veja a importância de seu trabalho, entenda o quanto aquilo que faz pode emocionar/alegrar as pessoas, quiçá curá-las – leia o texto “As canções (que curam)” caso ache que estou exagerando. Juro que não estou –, pois sabendo disso fica mais difícil que alguma observação preconceituosa/arrogante relativa ao ofício do cantor machuque o alvo do ataque, ou o coloque em dúvidas sobre seu trabalho.  
Para finalizar, há uma frase da Elis Regina (que, segundo Regina Echeverria, era respeitadíssima por seus músicos, referindo-se especificamente ao Zimbo Trio): "Sou músico, sim. Meu instrumento é a voz aliada à palavra. Não aceito discriminação."
Deve ser por também pensar assim que prefiro usar o termo "instrumentista" a "músico". É porque também penso que músicos todos nós (cantores e instrumentistas) somos. Afinal, todos nós trabalhamos com música. Cada um à sua maneira, cada um com suas facilidades e desafios.


segunda-feira, 4 de maio de 2015

A beleza constrangedora

Certo dia, conversando com minha amiga Laura Lagub, grande cantora e preparadora vocal, mencionei com ela algo que havia percebido. Contei que às vezes sentia que ficava constrangida com minha voz. Ok, todo mundo fica com vergonha quando a voz dá aquela falhadinha, não é? Mas o que eu contei a ela era exatamente o contrário disso.
O que acontece é: quando minha voz chega a seu ápice, quando soa bela demais, me bate um constrangimento. Assim sendo, no momento em que percebo isso dou um jeitinho de, aí sim, falhar, fazer algo para dar aquela piorada – rapidamente, mas o suficiente para quebrar o momento mágico.
Parece absurdo, e é. Mas continua sendo verdade. Minha voz, quando muito boa, me deixa sem graça. Como se aquilo fosse uma afronta. Como se “não pudesse”, por alguma razão.
Lembro do comentário de Laura sobre o que eu disse: “É que cantar é liberdade demais. Demais.” Disse isso e teve que atender o interfone, pois algum amigo estava chegando. Este papo específico foi esquecido no dia, mas acho que não era preciso desenvolver mais que isso: o recado estava dado. Esta liberdade que cantar nos dá realmente assusta, a beleza assusta, a magia disso tudo assusta.
Cantar é liberdade demais, sem dúvidas. O instrumento voz é incrível, absolutamente impressionante. Controlamos nossas notas com o pensamento. Não precisamos de nada, além do nosso corpo, para cantar. Cantar é colocar a alma para fora, literalmente, porque a voz vem de dentro, vem do coração aberto ou quebrado, do nó na garganta, do frio na barriga. Cantar é escancarar o que está acontecendo dentro da gente, e há grandes chances disso ser forte demais.
Lembro que certa vez, em 2007, em um dos ensaios do Dá no Coro, estávamos fazendo nossa preparação vocal com Glaucia Henriques, e quando ela pediu a uma das cantoras que emitisse determinada nota – que eu me lembre era um daqueles agudos poderosos –, a menina apenas cochichou algo no ouvido dela e saiu da sala rapidamente, chorando. “Não é incomum isso acontecer”, disse Glaucia.
A cada dia tento entender mais estes mistérios não tão misteriosos assim do nosso corpo. Esta coisa do canto ligar alguma ignição em nossa alma, nos levando a lugares obscuros, lugares que preferiríamos evitar. Lugares doídos da lembrança, ou cheios de saudades, ou de uma alegria desmedida, uma beleza gigante – que constrange, e, de tão rara, pode nos deixar a dúvida: “será que pode?”
A questão é que a voz não nos poupa da viagem. Ninguém usa o corpo e a respiração assim, impunemente. Cada pessoa tem sua própria questão a resolver, tem uma história de vida, e ao cantar isso virá a reboque, ou deveria vir (se não vier, talvez a escolha de repertório/as composições estejam distantes demais daquilo que realmente se é – mera suposição). A insegurança, a alegria, a timidez, a espontaneidade, a força, a vontade de aparecer, o jeito desafiador... Transparecerá aquilo que se é e aquilo que se tem.
E, se é beleza, que apareça e venha, sem medo.