domingo, 17 de maio de 2015

Ser o que se é

Lembro que quando tinha uns 12 anos adorava ver MTV. Passava tardes e tardes vendo milhares de clipes e conhecendo muitos artistas, principalmente bandas de rock. Minha irmã também amava (e ama) música, e me acompanhava dividindo o sofá ou o chão enquanto assistíamos Gás totalLado B...
Uma cena específica me veio à mente: certa tarde estávamos vendo o vídeo de alguma canção (não me recordo o nome) onde um grupo (não me recordo qual) se apresentava ao vivo. Vi as duas backing vocals do grupo cantando, extrovertidas e cenicamente bem expressivas. Eu disse: “Ai, por que é que sempre que tem uma mulher em uma banda ela tem que ser ou cantora ou backing vocal?”
(Não vou entrar aqui na questão do meu machismo, infelizmente existente já tão novinha. Quero abordar, por ora, outra questão. O tópico machismo vai voltar, até mesmo porque necessito falar sobre ele.)
Minha irmã, entendendo imediatamente o recalque, respondeu à minha pergunta: “Ué, fazer o que se elas são abençoadas por Deus e sabem cantar?” Tentei discordar, mas já era tarde. Eu havia sido desmascarada. Queria era estar ali, no lugar delas. Sem tocar nenhum instrumento que não minha voz. Queria cantar e ser expressiva, descontraída, mostrar aquilo que eu, aos 12 anos, já amava fazer: cantar.
Mas eu não assumia muito isso. Fui aprender a tocar guitarra. Queria ser instrumentista. Achava que cantar era algo “fácil” – e não sei por que cargas d’água achava que ter esta facilidade era algo um pouco menos digno de admiração do que ser instrumentista. Só porque era fácil para mim?
O fato é que sempre percebi que era afinada. Quando brincava sozinha e cantava ao mesmo tempo (jogando bola ou andando de bicicleta), via que minha voz era agradável, e que aquilo não era uma dificuldade para mim. Mas por que, então, eu menosprezava minha facilidade, ou dom, ou talento? Por que eu valorizava muito mais o que eu não tinha, o que não sabia? Porque eu considerava que quem “só” cantava não estava fazendo uma grande coisa?
Mal sabia eu a quantidade de poeira que ainda teria que comer para me tornar de fato uma cantora. Se soubesse, talvez respeitasse de cara todos os cantores que apareciam naqueles clipes que eu adorava.
É, acho que é isso: eu ainda não sabia que poderia melhorar, e muito, o meu canto – com aulas, preparação vocal; pensando qual seria meu conceito, o que de fato ficaria bem em minha voz, o que eu queria passar para os outros ao cantar e mais 8.956.733 fatores fundamentais para os cantores profissionais. Achava que aquilo ali estava “resolvido”.
(Sim, tão resolvido que eu não tinha nem coragem de cantar.)
Talvez a psicologia possa explicar isso. Fazendo uma  suposição, creio que tenha a ver com esta dificuldade comum em assumirmos o que fazemos com todo o nosso coração. Assumir mesmo, o que quer que seja. Ser veterinário, comerciante, professor, palestrante, político. Para o tipo de pessoa que sou, foi difícil assumir: sou cantora. Ainda é. Meu primeiro texto aqui no blog fala sobre isso. Considero que me assumi cantora, mesmo, somente em 2011, mesmo cantando desde 2000 (16 aninhos). Só há pouquíssimo tempo isso foi sendo assumido, e vez ou outra dá vontade de fugir e fazer outra coisa que não pegue meu coração com tanta força. Dá medo de se machucar ao se entregar, digo isso de cadeira. Não é fácil assumir aquilo que se é.
Aliás... pensamos muito na dor que vem no pacote quando nos entregamos àquilo que mais amamos. Porém, nunca pensamos na frustração que é não fazermos o que mais amamos (dor aparentemente menor, mas perene). Sim, se entregar é se machucar. Mas e o prazer que traz esta atitude corajosa? E a sensação de realização?
Parece que gostamos de dificultar, né? Pensemos: ora, se existem coisas nas quais sou boa, por que deixá-las de lado? Eu, hein! É gostar muito de dificuldade...
Muitos anos depois fui conhecer uma faceta bem desagradável de alguns instrumentistas (graças a Deus, não todos), que é a mania feia de não respeitar quem “só” canta. Isso é algo que pode minar a autoestima de muitos intérpretes. Mas o mais importante é que o cantor, desde sempre, saiba o valor daquilo que faz. Veja a importância de seu trabalho, entenda o quanto aquilo que faz pode emocionar/alegrar as pessoas, quiçá curá-las – leia o texto “As canções (que curam)” caso ache que estou exagerando. Juro que não estou –, pois sabendo disso fica mais difícil que alguma observação preconceituosa/arrogante relativa ao ofício do cantor machuque o alvo do ataque, ou o coloque em dúvidas sobre seu trabalho.  
Para finalizar, há uma frase da Elis Regina (que, segundo Regina Echeverria, era respeitadíssima por seus músicos, referindo-se especificamente ao Zimbo Trio): "Sou músico, sim. Meu instrumento é a voz aliada à palavra. Não aceito discriminação."
Deve ser por também pensar assim que prefiro usar o termo "instrumentista" a "músico". É porque também penso que músicos todos nós (cantores e instrumentistas) somos. Afinal, todos nós trabalhamos com música. Cada um à sua maneira, cada um com suas facilidades e desafios.


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