sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Com pé e com cabeça

Há tempos estava vendo uns vídeos das canções do primeiro CD de Alice Caymmi no YouTube. Quando fui ver-ouvir "Arco da Aliança", parceria de Alice com Paulo César Pinheiro, li um dos comentários sobre a música: "Letra sem pé nem cabeça. Se não tivesse o sobrenome Caymmi, tava lascada". 
Curioso é que enquanto eu via beleza na voz, na letra e na atmosfera criada, para a pessoa que escreveu aquilo só havia ali (que fosse digno de nota) uma letra "sem pé nem cabeça". Será que de fato aquela canção, para ele, não disse absolutamente nada?
O que acho, mesmo, é que faltou vontade de prestar atenção, e principalmente boa vontade. Faltou interesse em se envolver, sobrou implicância.
Vejo isso acontecendo bastante. Há certa birra com o que não é direto, com qualquer resquício de subjetividade. Já me vi muitas vezes assim, implicando, sem mais nem menos, com algo que eu não entendi, ou que tive preguiça de entender. Não sou obrigada, assim como ninguém é, a gostar de algo que (a princípio) não está se comunicando comigo, mas será que eu ao menos tentei compreender aquilo? Será que fiz algum esforço, parei por mais de dois minutinhos para ver se aquilo ali chegava até a minha pessoa?
O exemplo da canção “Arco da aliança” nem chega a ser um bom exemplo de uma arte de difícil apreensão – trata-se na verdade, em minha opinião, de uma canção tão linda quanto compreensível em sua poética, abordando cirandas e danças que alumiam, cenários tão fáceis de visualizarmos (e sentirmos). Mas, quando há má vontade, o resultado é esse: fala-se qualquer coisa, só para detonar.
Voltando à sessão mea culpa, cheguei a fazer parte de uma comunidade, no extinto Orkut, chamada “Odeio intelectualoides”. Não lembro o que me motivou a clicar ali – provavelmente algum filme “sem pé nem cabeça” que, impaciente, eu não quis entender? Talvez –, mas hoje vejo que esta atitude de fazer questão de mostrar minha aversão a assuntos intelectuais nada mais era do que uma invejinha básica. Inveja de quem conseguia sair do raso e partir para campos mais complexos. Talvez tenha sido a mesma inveja que sentiu o comentador de Alice (mera suposição) por, infelizmente, não se permitir ser menos direto e mais poético, às vezes.
Acho que temos ainda muita vergonha de deixar nosso lado mais sensível aflorar. Só vale “papo reto”, o resto é frescura? Enrolação? Arte é o que, então? “Coisa de fresco”? Deve ser, porque, aliás, até pronunciar a palavra “arte” – ou o derivado, “artista” – é um tabu, também. Já vi músicos rindo destas palavras. Eita! Precisamos de piadas melhores.
Em março aconteceu, na Praça Tiradentes, a Feira do Bonde, um ato político-artístico cheio de atrações. Entre estas, duas performers apresentaram um trabalho onde uma delas derramava um líquido vermelho na parceira, a enrolava em plástico filme, deslizava uma machadinha pelo corpo desta. Tempos depois a revista Piauí resolveu falar sobre aquilo (o ato como um todo) de forma bastante jocosa, fechando com chave de latão ao citar um comentário feito no YouTube, em relação ao vídeo da citada performance: “Eu devo ser muito ignorante mesmo, não entendi absolutamente nada.” Penso que o rapaz que escreveu talvez de fato não tenha entendido, mas poderia entender caso estivesse no local, no meio do contexto, sabendo que o evento tratava de política e questionamento da vida na cidade do Rio de Janeiro (que comemorava 450 anos naquele dia). Mas e a jornalista da Piauí, será que não entendeu mesmo? Ou fez questão de não entender para mostrar sua resistência àquilo que estava acontecendo?
Acho bacana sempre tentarmos separar aquilo que não entendemos por convicção (ou seja: quando temos ressalvas em relação a algo) daquilo que de fato não entendemos racionalmente, por falta de vivência ou envolvimento com o tema.

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