domingo, 16 de outubro de 2016

Trabalho invisível

Ultimamente, quando alguém me pergunta o que tenho feito ("E aí? Cantando muito?"), tenho dito sempre o mesmo: sim, tenho ensaiado bastante, e isso está me deixando muito satisfeita. Mas essas palavras, ao vento, não fazem jus ao que está acontecendo. Até mesmo porque trata-se de uma pergunta retórica, muitas vezes, e não vem ao caso me alongar na hora.
Mas, para quem mais quiser saber como andam as coisas e o que venho fazendo etc., tem esse texto aqui – que precisava escrever para mim, de qualquer jeito.
O lance é: venho fazendo um trabalho invisível. E, que incrível, há tempos não me sentia tão bem artisticamente como agora.
E neste momento, com este trabalho invisível, não há nada imediato. O processo é tranquilo e tem seu tempo, e não há urgência em mostrar resultados. Há uma necessidade de estar constantemente ensaiando e criando, mas estranhamente não há muita ansiedade, nem angústia. Não há desespero em afirmar que se está em atividade. Porque há aquela sensação inigualável de se estar fazendo o que tem de ser feito.
É engraçado que quando trabalhamos com artes – em qualquer área das artes –, geralmente queremos e precisamos falar sobre nossos trabalhos, ou melhor: precisamos mostrar ações, resultados. E a cada incentivo, a cada compra de produto (CD, livro, quadro), a cada pessoa que diz ali, na rede social, que se emocionou com algo nosso, nos sentimos amparados. Sentimos que está tudo indo bem, que as coisas estão seguindo como deveriam.
Acho que de forma geral acabamos relacionando a felicidade de sermos artistas ao reconhecimento de quem nos cerca, à aprovação de outras pessoas. O carinho de terceiros é muito valioso para nós, e acaba tendo mais importância até do que o ato de – por exemplo – sumirmos para o mundo, pensando no que estamos fazendo. Acaba, lamentavelmente, sendo mais valiosa esta aprovação e legitimação de outrem do que o ato de criarmos, sozinhos ou acompanhados (mas longe das atenções, dos holofotes), sem qualquer registro em vídeo ou foto.
Este ano, em abril, iniciei uma série de ensaios com o guitarrista Pedro Costa, e desde lá coisas muito importantes vêm acontecendo comigo. Porque certamente este tempo que estou tirando para investir em minhas músicas era algo que há tempos eu precisava fazer; ou melhor: era algo que eu estava esperando que eu fizesse há tempos.
Eu precisava parar e me concentrar na minha criação e no que eu queria dizer musicalmente. Sobre o que eu queria falar? A respeito de quê, exatamente, eu tinha/tenho necessidade de me expressar? Que tipo de melodia quero fazer? Com qual tipo de música eu me identifico para falar sobre este ou aquele assunto? Qual mensagem quero passar para mim, e para quem mais quiser me ouvir? Que tipo de sonoridade me traduz melhor? Quais palavras preciso pronunciar? Quais trechos de canções deixei de lado e preciso retomar?
Fico satisfeita em poder finalmente colocar em prática algo que precisava fazer há tempos, e principalmente porque a falta disso era algo que estava me frustrando. Faltava algo – e acho que sempre vai faltar, visto que somos feitos dessa inquietação e vontade de evoluir – mas era uma falta que eu sabia que existia e não queria resolver imediatamente. Protelei bastante (e ainda assim penso que está acontecendo na hora certa), mas finalmente encarei. E lembro como me senti no dia do primeiro ensaio. Fui à rua logo depois, participar de uma performance, e uma sensação de libertação estava bem intensa dentro de mim. Sensação de que agora, sim, estava começando a resolver o que tinha que ser resolvido. Esta sensação me deu muita paz.
Certo dia – há dois anos, já – tive que pensar sobre esta questão do aval dos outros. Eu havia deixado, à noite, dois vídeos meus subindo no Facebook. Ambos já estavam no YouTube e eu já os havia divulgado. No dia seguinte, de manhã, fui conferir se os vídeos haviam mesmo sido publicados pelo Facebook e vi vários comentários de amigos que haviam adorado os dois vídeos que fiz. Além de descobrir naquele dia que quando um vídeo é publicado pelo próprio Facebook o alcance é muito maior do que quando se coloca o link para o YouTube ou Vimeo (pois o Facebook espertamente divulga bem melhor aquela publicação), descobri como eu me guiava pela legitimação dos outros. Eu, que andava um pouco desanimada, ao ver tantas pessoas curtindo, elogiando, falando que amaram aquelas músicas e minha interpretação, me senti nova em folha. Me senti querida e pronto, o desânimo foi momentaneamente embora. Pouco depois me avaliei: como assim? Apenas quando “aprovam” o que faço me sinto motivada? Isso reverberou bastante tempo em mim e me fez abrir muito os olhos em relação à importância que damos a qualquer opinião que não seja a nossa. 
                Mas acho que entendi que os momentos mais valiosos são esses do recolhimento e do pensar sobre si como artista. São esses da criação, de conseguir transformar em arte o que se está sentindo, o que se vê, o que se vive. Mostrar depois o que se criou é necessário e faz parte da ação artística – a ideia é comunicar, também –, mas o fato de gostarem ou não deveria ser só um detalhe. Quem tem que gostar, mesmo, somos nós. Tão difícil quanto libertador entender (e incorporar  algo que ainda não consegui fazer totalmente) que já é uma grande conquista gostar de si mesmo como artista.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

As mulheres e eu

Tenho pouquíssimas parcerias com mulheres. Quando acontecem, são ótimas. Mas por que são tão raras?
Em 2015 fiz o show Tudo quer viver com Claudia Holanda. Também ano passado participei de shows da amiga Dandara Ruffier. Em 2007/2008 cantei no projeto Peneira Gruvi, com Laura Lagub. Já dei algumas canjas em shows de cantoras, e algumas delas deram canjas em shows meus. Mas nada combinado, ensaiado antes, parceirizado mesmo. Tudo no improviso bacana, mas só porque a situação chamou.
Para quem já está cantando há bastante tempo, na verdade isso é muito, muito pouco. Ok, minha primeira banda, formada em 2000, era de meninas majoritariamente. E em 2004/2005 cantei na banda de punk rock feminina Staples. Estas duas experiências foram muito importantes. Ok, legal, mas e depois disso? Quase nada. E se eu for comparar com a quantidade de parceiros homens, fica ainda mais evidente o quanto isso é, repito, quase nada. Já parceirei com Mauro Aguiar, Dudu Godoi, Pedro Logän, Luis Militão, Jurandy da Feira, Adriano Siri, André Gardel, Walter Fernandes, Sandro Dornelles, Amin Nunes, Silvan Galvão e muitos, muitos outros. Fosse cantando em shows deles, fosse compondo, fosse participando em seus CDs, ou convidando-os para cantarem comigo em meus shows, ou gravando suas músicas, ou criando shows em parceria.
No meu CD Temperos há apenas uma compositora presente, Adriana Cunha. E apenas uma participação feminina além da minha, a de Laura Lagub. Nenhuma instrumentista, nenhuma outra vocalista além de mim e da Laura, que também fez a preparação vocal.
Ok, vamos tentar cavar mais: o projeto Doces Cariocas (de cujo CD participei) contava com Alexia Bontempo, além de Pierre Aderne e Marcelo Costa Santos. No show Paneiro Amazônico, parceria minha com Silvan Galvão, contamos com várias percussionistas da Orquestra de Percussão Amazônica – além, é claro, da flautista Gabriela Góes, que faz parte da banda de Silvan. O que mais? No projeto de música infantil Ginjom, Rita Albano e eu éramos as representantes femininas. E Ana Sucha foi a percussionista do show Tudo quer viver no Godofredo. 
  Legal. Mas poucas vezes chamei musicistas mulheres para meus shows solo. Contei com Aretha Nobre no pandeiro em um ou dois shows. Uma vez a baixista Marfa tocou em um show meu, na praça São Salvador, substituindo o músico que sempre tocava comigo. E acho que é isso. Não lembro de outras situações.
Minha vivência com outras mulheres musicistas é tão, mas tão pequena que preciso tentar achar uma explicação. Por que isso? Onde foi que começou este distanciamento? 
Fiquei pensando se não foi a animosidade de algumas mulheres que fez com que eu me afastasse delas. Algumas situações chatas aconteceram, implicâncias estranhas vindas de outras artistas me atingiram desde que comecei a cantar na noite, em 2008. Mas não, esta não é a razão desta distância. Digo isso porque já muito antes, em minha extinta banda, Pic-Nic, que durou cinco anos, fiz pouquíssimas parcerias com mulheres – só lembro de Andrea Thompson e Bia Grabois. Este afastamento vem de longa data.
Desde o final do ano passado venho matutando sobre minha relação com outras mulheres, e tem sido ótimo tentar perscrutar esta questão. Tentar entender o porquê de tanta distância, tanto constrangimento. Com certeza tem muito a ver com admiração e com insegurança. Creio que eu deixe de me aproximar de outras musicistas porque as admire muito, e... “será que serei bem recebida?” Não, nem sempre somos recebidas de braços abertos por outras; nem sempre recebemos outras mulheres de braços abertos. Uma pena! Mas isso não pode nos impedir de continuarmos tentando uma aproximação.
E outro aspecto fundamental é o da competitividade. Esta é muito estimulada entre os seres humanos, de forma geral, mas é disseminada com especial dedicação entre as mulheres. É interessante para a sociedade que assim o seja. Então, lamentavelmente, desde muito cedo nos comparamos e julgamos, mutuamente. E sem dúvidas tudo isso é levado para a vida adulta – e como não seria? E aí quem sai ganhando são as indústrias farmacêuticas, de cosméticos, os cirurgiões plásticos, as academias. A nós, resta apenas o lixo: a competitividade, a desunião e a insegurança. E um sentimento de solidão, é claro.
Tem sido muito importante viver mais atenta a esta questão, pensar sobre “as outras & eu”. Porque felizmente algumas mudanças vêm ocorrendo, e penso que foi graças a este meu questionamento que, por exemplo, as poetas/letristas Karina Limsi e Jade Prata se tornaram parceiras neste ano – e, aliás, isso me deu uma felicidade tão grande que nem consigo descrever por ora. 
O que tenho certeza hoje é que quero fazer música com muitas outras mulheres, pessoas que, tenho certeza, têm tanto a trocar comigo. Ando fascinada por iniciativas como Mulheres Criando e Sonora, grupos e festivais que motivam esta união, este encontro tão importante entre nós, mulheres musicistas.
Ando me sentindo entusiasmada, mais confiante, e sei que, dentre muitas outras razões, isso também tem a ver com a minha aproximação com o universo feminino.
Para finalizar, um chamamento: você, mulher poeta, instrumentista, escritora, cantora etc., chegue junto! Sejamos parceiras – na arte e na vida.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Fissurando o machismo (com a música)



Há tempos venho querendo falar sobre o machismo na música. Venho pensando em como abordar isso, pois é um papo desagradável e bem delicado. Poderia citar muitos e muitos casos que vivi (alguns até já foram descritos aqui – mas sem a temida palavra “machismo” ser mencionada, que eu me lembre).
Mas me ocorreu algo: eu bem que poderia, por ora, falar exatamente sobre o contrário.
Me peguei pensando no papel importante da música ao combater estereótipos. Ao quebrar tabus.
Quando a música vai de encontro ao sexismo o resultado é lindo.
Porque estes dias me peguei pensando em umas cenas que quebram essa história de “macheza” (taí um conceito bem... ridículo, para dizer o mínimo) com maestria. Lembro-me de ver Gil e Caetano dando uma bitoca de meio segundo na TV. Lembro do frisson que isso causou, se não na sociedade, ao menos na minha cabeça. Eu tinha uns sete anos.
Vejo, hoje, vídeos antigos. Vejo Djavan e Caetano cantando “Sina”, em 1983/1984. Este vídeo me emocionou desde a primeira vez que o vi. Os dois no palco cantando abraçados, e também de mãos dadas em certo momento, em plena comunhão. Já fiquei vendo este vídeo no dia em que foi divulgada uma declaração horrorosamente machista de um político, para lembrar que o mundo também é cheio de momentos delicados e assim poder me curar daquele bode. (Funcionou.)
Penso em uma de minhas canções favoritas do Gil – devem ser umas 20 – e sei que a letra desta é um dos motivos para que eu sempre queira ouvi-la. “Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens / como beijo meu pai (...)”. E continua, enfatizando sua sensibilidade e fragilidade: “Diga a ele que não se aborreça comigo / Quando me vir beijar outro homem qualquer / Diga a ele que eu quando beijo um amigo / Estou certo de ser alguém como ele é / Alguém com sua força para me proteger / Alguém com seu carinho para me confortar / Alguém com olhos e coração bem abertos para me compreender”. Considero muito importante (e bela) esta declaração presente em “Pai e mãe”: eu, homem, preciso de proteção, carinho; eu, homem, beijo outros homens. Parece bobo e talvez pequeno, mas imagine crescer ouvindo coisas deste tipo, seja em música, seja em discurso, ao invés de “homem não chora”, “isso é coisa de bicha” e outras frases tóxicas? Se eu, que sou mulher, tivesse crescido ouvindo frases parecidas com as de Gil, por exemplo, hoje meu trabalho de desconstrução de minhas atitudes machistas seria bem menos árduo.
E que tal “Super-Homem – a canção?: “Minha porção mulher, que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É que me faz viver”. Particularmente, não me encanta o elogio ao feminino, mas sim ouvir um homem falando sobre ter, sim, uma porção mulher.
E mais uma do Gil (ok, ele é meu fraco, já admiti isso): em “Tradição”, ele diz que reparava numa garota do Barbalho. E reparava tanto, que acabou reparando no rapaz que ela namorava. “Reparei que o rapaz era muito inteligente / Um rapaz muito diferente / Inteligente no jeito de pongar no bonde / E diferente pelo tipo / De camisa aberta e certa calça americana”.
Quando Caetano diz “Ele me deu um beijo na boca”, ou que retribui a piscadela do garoto de frete do Trianon (pois sabe o que é bom), ou ainda quando faz uma canção para Dadi (o leãozinho que arrasta seu olhar como um imã), ou para Petit (e pede a este que tome a canção como um beijo), isso é fissurar o machismo.
Silva, em seu clipe “Feliz e ponto”, também engrossa este caldo. Ele e mais dois atores protagonizam a história de um trio de amantes / namorados, e Silva se relaciona com ambos (a mulher e o homem). Criou um estranhamento positivo, e fez isso com arte, beleza, amor. E, ainda por cima, a música é ótima. (Grata pela dica, Clara Gurjão!)
Momento papo chato: há um tempinho Fernanda Torres escreveu uma coluna que realmente deu vergonha alheia, dado o grau de machismo de suas palavras. Pouco depois teve que escrever um texto pedindo desculpas pelo chorume. Ok. Daí, para fechar com chave de latão, um artista visual (sim!) escreveu um texto revoltado com as desculpas de Fernanda (ele não a cita em nenhum momento, mas o contexto está bem claro), falando que o artista “não pede desculpas por seus textos”. “O ser humano, através das palavras, desafia o senso comum”, diz ele.
Bem, em primeiro lugar, por que um artista não poderia pedir desculpas? É uma pessoa como outra qualquer, que falha – e, aliás, está muito mais passível de erros, porque em teoria está sempre arriscando. E sua responsabilidade é grande: ele comunica a muitos. Se errar, tem que pedir desculpas, como todos nós – artistas ou não! Fico pensando se em algum momento a pessoa que escreveu este texto odiando a “Mea culpa” de Fernanda Torres pensou que o machismo é pura e simplesmente a expressão máxima do senso comum. Defendê-lo, ou negar sua existência, ou dizer que não atrapalha muito, é simplesmente apoiar o que já está sedimentado. Não sei se existe algo menos ousado e menos artístico do que reforçar o status quo.
Bom, deixando de lado esta galera careta – no pior dos sentidos: é a galera que morre de medo das mudanças que estão acontecendo –, quero dizer o seguinte: estes artistas que citei  (Gil, Caetano, Silva) fazem exatamente o que não se espera que eles, como homens, façam. E, como artistas, nos tiram da zona de conforto. Ousam e nos inspiram. Nos mostram que podemos quebrar regras e pensamentos antigos. Fissuram o machismo com suas artes.
Gosto de pensar em “fissurar o machismo” porque Jon Holloway diz que é isso o que devemos fazer em relação ao capitalismo: fissurá-lo. Criar pequenas alternativas. Nada disso irá extinguir o capitalismo, nem a crueldade do sistema em que vivemos. Mas certamente algumas pequenas atitudes podem mudar nossa vida para melhor. E vejo que alguns artistas tornam nossas vidas muito mais bonitas ao irem (eles sim) contra a corrente e ao terem a coragem de falar do que (ainda, lamentavelmente) causa estranhamento. São pequenos atos que têm grande efeito sobre nós, mesmo que nem notemos, a princípio. E é muito incrível finalmente perceber o quanto a música, de forma sutil, pode nos guiar por caminhos tão mais coloridos, abertos e felizes.
(Este texto não pretende fazer um apanhado de todos os artistas incríveis que fazem este trabalho de “fissura”. A ideia era apenas citar, de forma bem espontânea, as canções que mais me tocam neste sentido.)

domingo, 12 de junho de 2016

Eu me transformo em outras


              Há alguns dias o – maravilhoso – compositor Roque Ferreira fez um ataque furioso a Zélia Duncan. Foi uma fala muito estranha e sem sentido, mas que, pelo menos, gerou uma resposta brilhante de Zélia (porque, afinal, quase tudo tem um lado bom).
Explicando rapidamente: Roque, baiano do Recôncavo, grande nome do samba de roda e da música brazucafro, se recusou a disputar com Zélia a categoria Melhor Álbum de Samba, dentro do Prêmio da Música Brasileira. Zélia lançou em 2015 o CD Antes do mundo acabar, só de samba, e isso fez com que o compositor concluísse que “ela não é sambista, é oportunista”. Chamou Zélia de roqueira, mostrando grande preconceito com este gênero musical e grande desconhecimento sobre a carreira da cantora. E mostrando que, em sua visão, quem “é” de um estilo musical jamais poderá “ser” de outro. Triste, mas verdadeiro.
Eu, daqui, fiquei espantada e ao mesmo tempo fascinada com este episódio. Espantada porque quando um artista do quilate de Roque Ferreira fala uma coisa dessas, o que fazer? Eu me sentiria muito mais frustrada com uma bordoada dele do que com o esculacho de um crítico, ou de algum troll de internet. É muito mais difícil lidar com a grosseria e implicância de uma pessoa talentosa e brilhante, admirada por nós, do que por alguém que nem sabemos quem é, ou alguém que não admiramos. E fiquei fascinada porque a reposta de Zélia foi muito boa.
A réplica, publicada também em sua coluna de jornal (título: “Eu não sou eu”), aliás, vale ser lida na íntegra, mas destaco aqui alguns trechos: “Me entristece o que está havendo, pois rótulo é coisa de gente que pensa pequeno, que não olha o céu amplamente (...) Me chamar de roqueira muito me orgulha, mas não me traduz por completo e soa como um triste fundamentalismo musical. (...) Pra desespero de puristas, me sinto feliz de várias maneiras. (...) Sou uma intérprete e canto o que eu quiser, liberdade conquistada com muito suor e trabalho.”
A meu ver este caso só mostra o quão brilhantemente Zélia está levando sua carreira. E, de verdade, eu não fazia ideia do quão abrangente era sua trajetória, não tinha ideia de metade das parcerias sambísticas que ela cita no texto (Mariene de Castro, Ana Costa, Mart’nália, Paulinho da Viola, entre outros), e por isso não havia parado para pensar no quanto ela produz, no quanto ela é livre neste sentido. Conhecia o DVD (impecável) Eu me transformo em outras, conhecia seu CD só de gravações do Itamar Assumpção, seu show com Simone, com os Mutantes. Mas há muito mais do que isso, a mulher não para. Vai com todo mundo. Ao ler sua resposta e depois sua coluna em jornal, admirei-a ainda mais, porque estou agora achando que talvez Zélia seja uma das artistas brasileiras que mais se aventure por campos diversos. Encontrei mais uma figura para me inspirar.
Por causa deste episódio lembrei-me também de um trecho do documentário Coração vagabundo, sobre Caetano Veloso. Este afirmara que a melhor música do mundo era a norte-americana, em alguma ocasião que não sei qual foi. Daí uma publicação musical, em uma entrevista com Hermeto Paschoal, trouxe o assunto à tona, e pediu a opinião do instrumentista: “(...) não dá pra ouvir uma bobagem dessa de um cara que nem o Caetano, que como poeta é bom, mas como músico é um musiquinho...”
O documentário mostra a reação de Caetano ao saber deste comentário de Hermeto, e a resposta de Caê é muito boa; mas o que fica, para mim, é o quanto é marcante (para o mal) quando um ataque vem de alguém que gostamos. Caetano não sabia desta posição de Hermeto, e aquilo o deixa surpreso. Deve ser porque este comentário venenoso não parece vir de um cara como Hermeto, que produz tantas belezas. Não combina, parecem duas pessoas distintas: o maledicente e o sensível. Assim como é dissonante que um compositor como Roque chame, injustamente, uma cantora de oportunista. “Um ressentimento que não condiz com a poesia de sua obra… Pra mim, sua fã confessa, uma decepção imensa. Mas, há 35 anos cantando, já aprendi que a beleza de uma obra nem sempre vem aliada à beleza de quem a produz, por incrível que pareça.” Falou e disse, Zélia.
Vejo um grande conservadorismo – ou fundamentalismo musical, como bem disse Duncan – nesta atitude de Roque, e talvez até mesmo um ciúme (será?) por uma “novata no samba” como Zélia Duncan se aventurar por estas praias (coisa que ela já faz há tempos, como explicou). José Maurício Machline, criador do Prêmio da Música Brasileira deu a pista, ao comentar o pedido de Roque para não ser indicado: “O Roque não é dono do samba, nem do Recôncavo, nem de nada, por isso não vou retirar a indicação, temos um regulamento.”
Não sei se realmente Roque se acha dono do Recôncavo ou do samba, mas certamente ele acha que tem mais propriedade sobre este gênero e esta cultura do que Zélia. Do contrário, nunca teria feito este comentário esdrúxulo, nunca teria ficado irritado com algo tão banal – e tão bacana. Afinal, que bom que o samba está vivo, que bom que tantas pessoas gostam dele, que bom que ele é gravado, que bom que fazemos samba e vamos fazer sempre.                                  
Este episódio também me fez lembrar daquela vez em que um grande radialista daqui do Rio disse que eu estava “misturando muito”. Ele ainda não havia chegado a ouvir meu CD, mas, apenas pela minha descrição do mesmo, ele concluiu isso. Esta pessoa é uma sumidade quando se fala em rádio, mas é interessante pensar que, de fato, quem sabe do meu som sou eu, muito mais do que ele. Quem sabe se devo misturar ou não, quem sabe o que é melhor para mim, sou eu. Nem ele, nem Roque, deviam ficar indignados com as escolhas de qualquer artista, pois de nada adiantará. Vamos continuar fazendo, sempre, para desespero dos fundamentalistas.  

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Temperos pra vida

Engraçado. Nunca escrevi aqui no blog sobre como foi lançar meu primeiro CD. Nunca escrevi em lugar nenhum, aliás; nunca falei detalhadamente sobre o assunto. Acho que rolou uma ressaca (boa) tão grande em decorrência do lançamento que fiquei meio inebriada durante um tempinho, e daí o tempo passou e acabei não retomando o tópico. 
Estou agora ouvindo o CD, pois fui passar o link do YouTube para uma colega musicista e, sem perceber, deixei o som rolando. Fazia um tempo que não ouvia meu CD, e me peguei curtindo o som, como se fosse uma ouvinte, apenas. Que interessante! Interessante também foi relembrar como me senti ouvindo o CD físico pela primeira vez, no dia seguinte ao show, colocando-o no toca-CDs com certo medo. Porque acontece que o CD chegou exatamente no dia do show de lançamento – foi duplamente especial este dia, mas não recomendo a adrenalina! –, e eu não havia feito o test drive no bichinho. Foram cem CDs vendidos no lançamento (iêba!), mas eu ainda não sabia se a fábrica tinha dado mancada ou não, vixe! Que alívio ouvi-lo, e que felicidade senti ao colocá-lo em meu guarda-CDs e ver sua lombada ao lado de outros discos que adoro, muito bem acompanhado.
Acho importante escrever isso agora. Não porque eu queira supervalorizar este empreendimento, mas exatamente porque sei que às vezes tenho uma atitude de deixar para trás o que já foi feito, às vezes até subestimando meus feitos, e pensando apenas no que está por vir. É importante lembrar o quanto fazer este CD mudou minha vida. Me tornei uma pessoa muito mais caprichosa, exigente com meu trabalho. Eu, que já havia desistido há tempos de fazer um disco, vi que isso era possível. E, apesar de alguns percalços, fui até o fim. O processo foi lindo, e esta é a melhor parte. Quando o processo é bom, o final importa bem menos, pois já se está no lucro desde o início. Já se o processo for ruim... Acho importante repensar, porque a cobrança interna pelo resultado final será enorme, e provavelmente haverá frustração.
E o que eu notei nas tardes, noites e algumas manhãs que fiquei no estúdio com o produtor acompanhando as gravações ou gravando, pensando arranjos, formações, conversando e tendo ideias, foi que estava acontecendo ali um crescente amadurecimento meu como profissional. E isso só se deu porque resolvi me juntar a pessoas focadas, contagiando-me com aquela forma de pensar trabalho, aquela entrega típica de quem ama e respeita o que faz.
Bem, e no dia 16/07/2014, quando meus vizinhos-santos chegaram no  Teatro Sérgio Porto carregando duas caixas de CDs (a entrega foi feita em minha casa e eles quebraram este galho gigantesco), onde eu já estava desde as 14h passando som, foi incrível entender que realmente aquilo tinha acontecido. Não chorei, não dei gritinhos – acho que estava muito pé no chão e concentrada demais para aquele show, que também exigiu uma bela produção –, mas a felicidade foi grande em abri-lo, vê-lo ali, no duro, o primogênito.
Nos dias seguintes fiquei curtindo as pessoas falando sobre o show, sobre o CD, e foi uma delícia saber que tantas pessoas se emocionaram com as músicas e que aquilo que fiz as tocou. Acho que por isso os efeitos do pós-show foram inebriantes: foi muito amor, muita energia boa, aliados à sensação incrível de ver um projeto finalizado.
Se pouco tempo depois eu já estava decidida a não fazer mais shows deste CD, foi por uma ótima razão. Foi porque entendi que já havia completado uma etapa e já podia falar sobre outros assuntos, mais meus. O ano que se seguiu, 2015, foi bastante focado na criação e na reflexão, e, mesmo que vivamos em uma sociedade onde (voltando ao assunto) produto é tudo e processo não é nada, foi um ano artisticamente importantíssimo, talvez o mais importante até agora. E só consegui ter este momento de criação e de me voltar para dentro de mim porque o Temperos já existia, e me fazia lembrar que eu era capaz de fazer muito, o que eu quisesse, na verdade.  Fosse gravar um CD e fazer um show lindo; fosse compor e cantar meu próprio discurso. 
Fica aqui o registro e o reconhecimento da importância de ter colocado meu bloco na rua; de ter feito, com medo mesmo, aquilo que deveria ser feito. Que bom que entendi, talvez inconscientemente, à época, que “aquilo que temos de aprender a fazer, aprendemos fazendo”.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O violeiro



Eu devia ter uns 14 anos, mais ou menos. Comigo, minha irmã e os amigos Antonio e Thiago. Estávamos no calçadão da praia da Barra, bem em frente à minha casa, e por isso nos sentíamos seguros por lá, mesmo que já fosse alta noite. Ficávamos nós quatro lá, rindo, tocando Nirvana, Blind Melon, talvez Led Zeppelin e sei lá mais o quê ao violão. Sempre rock, sempre um som norte-americano ou inglês. Era o que curtíamos, o que víamos na MTV. Os CDs que comprávamos eram dessa galera aí.
Sempre que nós estávamos com o violão no calçadão, ou em qualquer lugar, aparecia alguém. Era tão certo isso que eu cheguei à conclusão de que quando alguém estivesse triste, se sentindo solitário, resolver o problema seria fácil: bastaria pegar um violão e ir para a rua, pois invariavelmente alguém apareceria para bater papo, cantar alguma coisa, mostrar uma canção.
Acontecia mesmo, e era divertido (às vezes inconveniente, mas geralmente divertido). E nesta noite específica veio um rapaz de seus 38 anos, por aí, e pediu licença para nos ouvir. Ficamos lá e depois, não lembro como, a viola foi parar com ele. Ele deve ter tocado mais de uma canção, mas uma música específica me marcou bastante. Ele tocava muito bem, e falava sobre enforcar o pescoço da viola (e o fez enforcando mesmo o pobre violão, bem embaixo da mão do instrumento), e tocava, emocionado, versando sobre amor, dinheiro não.
Lembro dele falar, entre uma das canções, sobre música brasileira. Sempre muito respeitoso e sem invadir nosso espaço, ele, entre outras coisas, disse: “acho que precisamos valorizar o que é nosso.” Eu não entendia quase nada de MPB que não fosse Jorge Ben ou Daniela Mercury — dois artistas que, naquela época, eu já nem ouvia mais. E a verdade é que eu não achava que o que era “nosso” fosse tão bacana assim. Não entendia porque é que deveríamos valorizar algo apenas por ser de nosso país. Mesmo que entre os 10 e os 11 anos de idade eu tenha ouvido O canto da cidade, de Daniela, e o álbum (quer dizer: fita) 23, de Jorge, até a exaustão, aos 14 já os estava desprezando. Como se pode ver, eu realmente estava precisando ouvir aquilo que aquela pessoa dizia. Porque apenas muitos anos depois fui entender aquele pensamento. Muito tempo depois aquilo foi reverberar em mim. E engraçado é que, mesmo sem concordar com o que ele disse, nunca esqueci a frase. E nunca esqueci a canção que ele tocou naquela noite, de forma tão interpretativa, como se estivesse em um grande palco, e não mostrando uma novidade para quatro adolescentes usando camisetas pretas.
Este episódio se deu em 1998, pelos meus cálculos. E o bacana foi que em 2010 a história voltou à tona. Estava eu ali, nos Arcos da Lapa, em frente ao Semente, conversando com o amigo Thiago, o mesmo que ficava conosco rindo de qualquer besteira e tocando rock no violão até altas horas na praia, e falamos sobre esta época. Mencionei o dia específico do rapaz que tocou Elomar (agora eu já sabia que aquela linda música se chamava “O violeiro”, que era de autoria do incrível cantador da Bahia, e que havia servido de inspiração para Caetano em “Beleza pura”). E daí a surpresa. Thiago me disse: “Aquele cara era o Fred Eça. Eu o vi várias vezes depois, lá pela Barra.” Fiquei muito feliz que ele não só lembrasse daquele dia, como também soubesse a identidade do cara que falou algo tão importante, que ficou marcado em minha memória.
Hoje em dia sei exatamente do que é que Fred estava falando. Não se trata de valorizar algo apenas por ser fruto de nosso país. Entendo que aquilo ali é parte de nossa identidade, e assim sendo aquilo ali nos explica um pouco mais sobre quem somos.
Quando, em 2008, comecei a cantar como intérprete de MPB na noite, e mesmo antes, em 2006, quando comecei a cantar em um grupo vocal focado em MPB e música afro, eu fui aos poucos me sentindo muito, muito bem. Fui conhecendo um universo tão rico, diverso, tão cheio de detalhes, nuances, tão colorido, solar. E isso foi essencial para minha saúde, para minha alegria, para minha empolgação em cantar. Foi essencial conhecer algo que, como mencionei, me ajudava a decifrar um pouco mais de mim.
E o lance é que aquele som que Fred tocou, antes de qualquer coisa, é bom demais. Não é só “nacional”: é surpreendente, ousado, estranho e belo. Aquele som e muitos outros estão aí para nosso deleite, para nossa alegria. Nada a ver com nacionalismo. Falando por mim, digo que tem tudo a ver com identificação. Com achar um lugar. E também com misturar aquilo ali com o que eu bem quiser, e fazer daquilo mais uma ótima referência, algo para ser usado e abusado. Para ser citado por Caetano ou por mim; algo que podemos e devemos reinventar. Taí. Aproveitemos.
Sou grata ao Fred pelo grande presente musical que nos deu naquele dia. Pelas palavras importantes, que só puderam ser ditas porque ele, felizmente, se sentiu à vontade para trocar conosco. Nós, que parecíamos pertencer a um universo aparentemente tão diferente daquele universo que ele vinha nos trazer, na verdade absorvemos tudo (mesmo que bastante tempo depois). 

domingo, 17 de abril de 2016

Ecad, melhora isso aí

Estes dias entendi porque o Ecad é tão malquisto, e resolvi contar o causo que me levou a esta compreensão.
Já adianto que no final dá tudo certo, e que esta nem é lá uma grande história. Mas que é um bom exemplo de um modus operandi estranho, isso é. E por isso acho até que tenho a obrigação de escrever sobre.
Usarei nomes inventados para contar a história.
Bem, o lance é o seguinte: eu estava fazendo a produção de um show em parceria com um amigo, em um teatro muito bacana, um espaço que adoro. Fomos contemplados com duas datas, através do edital da instituição. Porém, tratava-se de um edital sem financiamento, onde a instituição apenas disponibiliza o espaço.
Digo isso apenas para que fique claro que aquele show pedia uma boa dedicação para que, além de bonito, fosse autossustentável (sem prejuízos). Nós, músicos, trabalhamos muito: ensaiando; pensando em revezamentos entre nós para não precisarmos de bilheteiro; pedindo ajuda ao técnico de som da casa, visto que não poderíamos contratar um; divulgando via internet e fazendo assessoria com jornais; conseguindo equipamento emprestado com um amigo; conseguindo carona com este mesmo amigo-santo para transportar os amplificadores; e mais um bando de detalhes.
Um destes detalhes era o Ecad, que eu precisava resolver.
No dia 23 de março enviei um e-mail ao órgão:

Olá Giulianne,
Dia 5 de abril farei um show no ---- com o músico ----. Gostaríamos de acertar com o Ecad em um contrato pós-borderô (visto que é a forma mais econômica para nós, músicos independentes).
Como proceder? Envio por aqui mesmo a lista do repertório?
Grata,
Guidi

Eu havia enviado o e-mail me dirigindo à Giulianne, pois havia sido ela a pessoa que me atendeu em relação a um show que fiz em 2013, no mesmo espaço. Mas quem respondeu ao meu e-mail, neste mesmo dia (23 de março), foi a funcionária Rizoflora, que me enviou dois formulários para preenchimento: Coleta de Dados para Execução Pública Musical + Roteiro Musical.
Demorei uma semana para enviar os dois formulários, visto que ainda estávamos ensaiando e decidindo o repertório. Assim que decidimos enviei os dois arquivos por e-mail, no dia 1º de abril. Logo recebi resposta (mesmo dia) dizendo que os arquivos não vieram anexados (eita! Falha nossa), e os reenviei prontamente, poucas horas depois.
Fiquei no aguardo. Até o dia 04/04 eu não havia recebido resposta, e era véspera do show. E sem que eu estivesse com a questão do Ecad resolvida, o teatro não poderia permitir que o show acontecesse. Liguei para o Ecad para saber do meu caso, e consegui falar com Rizoflora. Ela disse que responderia no mesmo dia o meu e-mail. Perguntei: “Mesmo? O show é amanhã.” “Sim, amor”, respondeu ela.
No mesmo dia recebi o e-mail dela, com a notícia:

Boa tarde, Guidi!
O valor do recolhimento autoral, do evento ----, que ocorrerá no dia 05/04/2016, no ---- é de R$ 216,00.
No aguardo.            
Rizoflora

Fiquei assustada com este valor (que comeria boa parte de nossa bilheteria) e repliquei, alegando que já havia alertado sobre nossa preferência pelo pós-borderô:

Olá Rizoflora,
Sempre opto, como optei desta vez (e já havia notificado a vocês via e-mail, há 12 dias), pela opção pós-borderô.
Fico no aguardo de mais explanações, obrigada.
Guidi

A resposta foi impressionante:

Boa tarde, Guidi!
Trocamos e-mail no dia 23/03/2016 e em nenhum momento isso ficou acordado entre nós, ate porque para a entrega de borderô posterior ao evento é necessário fazermos o termo de garantia mínima, o qual você paga 30% antecipado e o complemento se houver uma receita maior do que o cobrado antecipadamente. No dia 01/04/2016, que recebemos seus formulários preenchidos, os quais hoje estou dando tratativa. Contudo, o máximo que podemos fazer, uma vez que o show é amanha é lhe conceder um desconto, o valor autoral fica em R$ 172,80.
No aguardo.
Rizoflora

E lá fui mostrar que sim, eu havia avisado sobre o pós-borderô:

Olá Rizoflora,
No e-mail abaixo (enviado dia 23/03) eu digo claramente:
"Gostaríamos de acertar com o Ecad em um contrato pós-borderô (visto que é a forma mais econômica para nós, músicos independentes)."
Por favor, leia abaixo [o e-mail na íntegra estava encaminhado].
Apesar de achar que eu estava falando com Giulianne (pessoa que me atendeu em 2013), você foi a pessoa quem respondeu a este mesmo e-mail, e foi por este e-mail que continuamos o diálogo.
Obrigada,
Guidi

Depois disso a situação melhorou:

Boa tarde, Guidi!
Você pode apresentar o borderô após sem problemas, mas será necessário fazermos a Garantia mínima. O valor do termo fica em R$ 64,80 . Por gentileza nos encaminhar os documentos abaixo:
- CPF
- RG
- Comprovante de Residência.
Atenciosamente,
Rizoflora

Enviei os documentos escaneados e neste mesmo e-mail perguntei, apenas: “Qual o próximo passo?”. Rizoflora respondeu:

Boa tarde, Guidi!
Configurarei o termo e lhe encaminharei para imprimir duas vias, rubricar as três primeira paginas e assinar a última, entregará aos meus cuidados no endereço abaixo, onde fará a retirada do boleto da Garantia e após a apresentação do evento nos encaminhará o borderô para analisarmos.
 End: Avenida Almirante Barroso, nº 22 - Centro/RJ.
 Ok?
Atenciosamente,
Rizoflora

Já eram 16h28, o Ecad deveria fechar entre 17h e 18h. Perguntei:

Olá Rizoflora,
Hoje eu poderia ir até que horas ao Ecad?
E amanhã? A partir de que horas e até que horas posso ir ao Ecad?
Apesar de ser pior amanhã (visto que é o dia do show), creio que seja o mais provável.
Obrigada

A resposta:

Boa tarde, Ingrid!              
Segue em anexo o termo [de Responsabilidade], trabalhamos de 9h às 18h.

Após receber este e-mail, decidi que resolveria a questão no dia seguinte. Pedi a meu namorado que fizesse isso por mim, e exatamente pensando nesta possibilidade foi que sublinhei no e-mail a pergunta sobre os horários: não queria que ele, que nada tinha a ver com aquele assunto, se deslocasse até o Ecad e desse com a cara na porta ou não encontrasse Rizoflora. Eu não poderia ir porque tinha uma prova às 10h, e da prova iria pegar os amplificadores para o show, e então seguiria para a passagem de som (e foi assim que aconteceu: saí da prova, peguei os   amplificadores no Flamengo e na Lapa, com a carona do amigo que emprestou os equipamentos, e fui para o teatro. Absolutamente nenhuma brecha de tempo).              
No dia seguinte, chegando ao teatro, meu namorado me encontrou por lá e me contou: Rizoflora não estava no Ecad no momento em que ele foi até lá (bem como imaginei que poderia acontecer) e foi dito a ele por outra funcionária que não havia nenhum responsável ali que pudesse assinar o Termo de Responsabilidade. Esta funcionária disse que não haveria problema, pois eles enviariam o termo assinado por e-mail, e já que o principal eles podiam fazer, que era emitir o boleto para que o mesmo fosse pago e o show fosse liberado. Ele seguiu para o banco, fez o pagamento e me encontrou no teatro.              
Apesar de toda esta correria bem no dia do show, a apresentação rolou muito bem. Foi bem cansativo, ficamos nos revezando na passagem de som para cumprir com as necessidades da produção, mas contamos com a colaboração de muitas pessoas também na bilheteria (inclusive pessoas que iam se apresentar como convidadas no dia), e o namorado ficou na entrada do teatro e na venda dos CDs. Deu tudo certo. Não tivemos prejuízo, reembolsamos a grana do Ecad para o namorado, tudo bonito.                  
Eis que uma semana depois, dia 12 de abril, recebo o seguinte e-mail:

Boa tarde, Prezados!
Até a presente data não recebemos o borderô, referente ao evento do dia 05/04/2016. Sem o mesmo até o fim do dia, emitiremos em cima da capacidade do local.
 No aguardo.
Atenciosamente,
Rizoflora

É verdade! Eu precisava enviar o borderô assinado por mim e pelo teatro. Havia ficado tão extenuada com a produção do show (e principalmente com esta história do Ecad) que me esquecera do compromisso pós-show. Mas preciso dizer que achei esta forma de lembrete bastante ruim. Quase uma ameaça, não? Afinal, teríamos que simplesmente pagar aquele valor inviável para nós (R$ 216,00) se eu não tivesse acessado meu e-mail, se eu tivesse passado o dia fora de casa, se eu estivesse sem internet.
Fiquei impressionada com a falta de jeito do Ecad para lidar com o artista/produtor/casa de show etc. Só respondendo meu e-mail quando liguei para pedir que o fizessem, na véspera do show. Dizendo que eu não havia falado nada sobre o pós-borderô, sendo que eu havia falado. Dizendo que eu poderia ir lá entre 9h e 18h, e isso não era verdade (visto que meu namorado foi até lá às 12h30, aproximadamente, e saiu sem o Termo assinado, apenas com o boleto). Dizendo que teríamos que pagar a porcentagem do Ecad calculada em cima da casa cheia (como se o teatro tivesse vendido todos os ingressos), caso não enviássemos até o fim daquele mesmo dia o borderô.
Felizmente eu estava em casa e enviei o borderô na mesma hora. Recebi a confirmação de Rizoflora de que estava tudo ok.
Se de fato eu não tivesse visto aquele e-mail e me fosse cobrado o valor de R$ 216,00, acho que infelizmente eu chegaria a meu limite e faria um escarcéu. Seria a gota d’água, depois de uma produção extenuante e um atendimento bem ruim por parte deles, ter que dar um dinheiro que eu não tinha para uma instituição visivelmente desorganizada (não vou nem entrar em outras questões relativas ao Ecad, bem mais espinhosas – todos sabem quais são!). Mas que bom que não foi preciso.
Ah, não que eu faça questão, mas até hoje não recebi o Termo de Responsabilidade assinado. Nem pedi isso, mas é engraçado ver como o Ecad é exigente com o artista, mas talvez não seja assim tão exigente consigo e nem se preocupe tanto em cumprir com todas as suas obrigações.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

São Paulo é uma festa



Sampa aniversariou anteontem, e eu não havia me tocado de que precisava escrever, mesmo que não muito, sobre o que sinto por esta cidade. Minha pouca vivência em SP é inversamente proporcional ao meu fanatismo por este lugar. E depois de ler o texto de Clara Averbuck (“Ei, São Paulo”) e, logo em seguida, ver o clipe de Anna Tréa (“Paulista”), entendi que eu também precisava falar sobre minha admiração por Sampa.
São Paulo é o seguinte: me deixa acesa e me dá frio na barriga. Por quê? Porque é muita expectativa, é muita possibilidade. É muito para a minha cabeça, e eu quero cada vez mais deste muito, como uma viciada que não mede as consequências.
Acho que tudo começou em 2011, quando, voltando de um festival em Jundiaí, o amigo Sandro Dornelles me arrastou para o sarau Lua Nova, na capital (à época, no bar Varal). Depois de ouvir várias pérolas naquela noite (três cantoras interpretando “Coco do coco”, delicioso), em dado momento Renato Braz chegou e, como se sua simples presença já não bastasse, o cara vai e canta “Ipê”, uma de minhas canções preferidas. Entendi que era assim que a coisa funcionava em São Paulo. Entendi que ali havia ambientes onde era possível ir do samba coco ao Belchior, sem preconceitos.
Confesso que o cinza já me fez ficar depressiva no primeiro olhar (pobre SP, a culpa nunca foi sua, o cinza estava dentro de mim). E o engraçado é que hoje este mesmo cinza me preenche. Quando o vejo não me vem mais tristeza; acho-o tão forte, tão necessário para mim, para o mundo... E hoje, ao chegar na cidade, me sinto privilegiada. Me sinto sortuda, como se estivesse ganhando um presente especial. Aproveito qualquer ocasião para poder estar por lá. Crio cada vez mais necessidades, invento qualquer desculpa. Faço qualquer negócio para estar vivendo um pouco do que Sampa tem.
E quero aproveitar ainda mais, muito mais. Tenho sonhado com uma vida dupla. Metade aqui, metade lá. Aproveitando ao máximo esta capital tão efervescente e cheia, que a cada vez que me vê me contagia com mais alguma coisa boa. Alguma canção, alguma peça, algum show, claro, mas, mais do que isso, unovo tipo de pensamento. Uma nova abertura musical, filosófica. Sempre volto com mais uma peça do quebra-cabeça, ou, ao contrário, com um tormento novo, uma questão nova para pensar.
E por todas estas questões novas e possibilidades que sei que virão até mim em qualquer estadia na cidade, ao chegar no Tietê (momento em que sempre me vem a música “Quem é cover de quem”, de Itamar Assumpção, na cabeça - ele é a voz que inconscientemente escolhi para representar esta cidade) sinto uma ansiedade boa. E também andando pela Paulista, à noite, sozinha; ou de tarde, acompanhada. Vendo casais gays de mãos dadas na Augusta. Andando pelo Centro Histórico, conhecendo a Biblioteca Mario de Andrade, vendo o Metá Metá na Casa de Francisca, ouvindo um choro no Ó do Borogodó, me refrescando no bebedouro do Parque Trianon, vendo a exposição sobre Dona Ivone Lara no Itaú Cultural, a exposição sobre Augusto dos Anjos na Casa das Rosas, vendo e ouvindo Suzana Salles no Teatro de Arena. Uma ansiedade que não estraga nenhum momento, mas, ao contrário, faz com que eu o viva com mais intensidade, mais sede, aproveitando-o inteiramente. 
Vou deixar a parte mais romântica para o fim, uma graça para quem conseguiu atravessar estes parágrafos melosos. Em junho de 2014 ganhei um par de ingressos para o (ótimo) filme Riocorrente, de Paulo Sacramento, que se passa em São Paulo. Por que ganhei este regalo? Porque ao responder à pergunta “qual sentimento eu carrego por São Paulo”, fui sincera, derramada,  quiçá ridícula, mas, de novo, sincera, e minha declaração de amor foi uma das ganhadoras da simpática promoção. É com ela que fecho este texto, que eu já queria ter escrito há muito tempo, para poder espalhar aos quatro ventos que eu, simplesmente, amo São Paulo.
Carrego uma saudade enorme - uma saudade de quem nunca esteve verdadeiramente lá, por muito tempo, por inteiro, e só pôde sentir levemente o gosto da cidade. Carrego esta saudade (misturada com lamento) porque sei que perco muito por não viver esta metrópole: há um universo imenso que certamente me traria muitas delícias, e que, só para me fazer doer, é próximo demais daqui (e por isso me parece tão distante).
Por enquanto, São Paulo é apenas isso: uma grande saudade-lamento.”

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Foi mal aí

Tenho tentado muitas coisas. Contato com pessoas que admiro, trocas musicais com ídolos consagrados, bem como com artistas independentes. Pessoas que não conheço (ou que mal conheço) e que são muito boas no que fazem. Nisso, me toquei do seguinte: é possível, é bem provável, que eu esteja sendo considerada uma chata. É possível que nesta minha tentativa de criar novos laços, de fazer novas parcerias, eu esteja recebendo a etiqueta de pessoa incômoda -- ou eu esteja vestindo esta roupa, depende do ponto de vista.
(Apenas explicando: não chego a grudar, apenas tento uma vez. Se der, deu. Não insisto, pois não gosto que insistam comigo. Mas ao menos uma vezinha eu vou lá e tento.)
E, ao pensar sobre estas minhas tentativas, entendi o seguinte: não importa se vão achar que estou dando em cima. Não importa se vão achar que estou pegando no pé, que estou sendo uma loser que não se toca. Se estou sendo a pessoa mais aporrinhante da paróquia. Por que não importa? Porque, foi mal, gente: tenho que me movimentar e buscar parceiros, a vida é curta, o tempo voa, quero fazer muito, e para isso não dá para ficar me privando de experiências possivelmente bacanas em nome do meu orgulho. Pode até doer caso eu saiba que alguém está me achando inconveniente, mas é dor que dá e passa. Já os resultados bons ficam na memória por muito tempo, mudam a vida para melhor.
Correr atrás de coisas boas, de pessoas que gosto e admiro e com quem quero ter contato implica ser ignorada. Implica ouvir algo diferente do que esperava. Implica não conseguir, ficar triste e frustrada momentaneamente. Mas esta mesma atitude me proporcionará momentos lindos e amizades, músicas novas, encontros inesquecíveis.  E muitas vezes correr atrás das pessoas que gosto e admiro significa conseguir o contrário de tudo isso aí que enumerei. O resultado pode ser exatamente o que eu queria, ou algo ainda melhor, que eu nem sabia que poderia acontecer. Não me guiar pelo ego (pois, segundo este danadinho, nunca se deve ficar na posição frágil, ou seja, naquela de "pedinte", de correr atrás de alguém, de sair do pedestal para olhar no olho) fará com que eu consiga muito. Mas é preciso estar preparada para sofrer. É preciso entender que não é só por ter certeza de que este é o certo a se fazer que, plim! Em um passe de mágica tudo irá se resolver. Não, as pedras no caminho continuarão, e por isso é muito importante estar bem consigo para não desanimar nem se achar um zé mané durante o processo -- processo, aliás, que dura para sempre, pois sempre vou querer novas parcerias. Então é preciso ser forte.
A poeta Mary Oliver fez a provocação "Tell me, what is it you plan to do with your one wild and precious life?". Me pus a pensar, e vi que não pretendo sair frustrada, muito menos ficar viciada em minhas frustrações, remoendo-as com um prazer masoquista. Quero realizar a maioria de meus sonhos (leia-se "planos", se preferir), mesmo que o medo de ser feliz ainda exista. Eu quero que ele vá embora e libere o espaço para as boas oportunidades que surgem volta e meia. 
É preciosa demais a vida, e acho que esqueço disso muito frequentemente. Se não me esquecesse, não me importaria tanto com as pedras no caminho, com as respostas ásperas (que podem, simplesmente, não significar nada além de uma pressa, indisposição ou qualquer outra coisa sem nenhuma relação com a minha pessoa). Não me importaria nem um pouco com as respostas que nunca recebi. Com as desconfianças que posso ter despertado. 
Ser vista como inconveniente e seus derivados é um preço muito pequeno a se pagar para colocar em prática aquilo que quero e preciso realizar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Legitimidade

Há tempos escrevi um texto sobre a minha necessidade de trabalhar como tradutora, revisora e digitadora, paralelamente à minha vida de cantora. No texto eu valorizava esta situação, pois de fato é bom evitar colocar qualquer tipo de pressão na profissão de musicista; é muito bom poder dizer “não” a propostas ruins de trabalho; é muito bom não cantar em casas de shows desonestas, coisa que muitos precisam fazer, pois a única fonte de renda destas pessoas é aquela, a música. No texto falei sobre o lado bom de ter um trabalho paralelo, mesmo que administrar duas funções (ou mais) às vezes seja cansativo, e mesmo que, é claro, eu deseje viver de minha arte.
Avaliei, também, que eu havia mudado e entendido, com o tempo, que não ser cantora exclusivamente não era algo ruim, e talvez nem mesmo me prejudicasse tanto. Na verdade talvez até me ajudasse artisticamente, pois, tendo outra renda, eu poderia fazer na música somente aquilo que eu quisesse. E tempos depois de escrever aquele texto entendi ainda um pouco mais a questão, e hoje penso que a dedicação a atividades distintas não diminui uma pessoa, mas a fortalece, a torna polivalente.
Relembrei deste assunto porque há tempos venho elucubrando sobre algo que, desconfio eu, está implícito naquele texto: a busca pela legitimidade.
A escritora Gretchen Rubin foi a responsável por me abrir os olhos em relação a esta inútil procura. Li seu livro Projeto felicidade ano passado, e uma passagem me chamou bastante a atenção. Gretchen diz: “Eu tenho a preocupação de me sentir legítima.” Neste trecho, um diálogo com sua irmã, a autora fala sobre sua dificuldade de se definir como escritora, pois isso não fazia com que ela se sentisse legítima (leia-se: legitimada pela sociedade – esta foi minha leitura, ao menos). Me identifiquei com esta fala.
Minha busca por legitimidade é um pouco diferente da busca de Gretchen, mas a ânsia é igual. Minha necessidade de me sentir legítima está relacionada à minha graduação – que não é em Música, nem em Artes Cênicas, nem mesmo em Letras, mas em Comunicação; – está relacionada a todos os empregos ruins que tive, trabalhando com coisas que, nem por um segundo, me interessavam (vendas, atendimento ao público). E, por fim, esta ânsia por legitimidade se faz presente quando me sinto diminuída por não ter, hoje, um emprego fixo.
Entendi que, talvez, ao escrever aquele texto eu tenha querido dizer, inconscientemente: não sou apenas cantora. Sei fazer e faço outras coisas.
Acho que eu nunca havia utilizado esta palavra para me avaliar: legitimidade. Gostei de descobrir “o nome da doença” (ha!), porque isso me ajudou a avaliar melhor esta necessidade que criei. Mas ainda resta a dúvida: onde será que surgiu esta vontade de provar algo a alguém? Onde foi que comecei a achar que o que eu fazia não podia ser levado a sério (não podendo ser um caminho a seguir)?
Engraçado lembrar que minha infância foi toda coroada por músicas (principalmente aos 10 anos e com toda força a partir daí), ouvindo-as e cantando-as sem parar, sem a menor dúvida de que aquilo era o que eu mais gostava, que aquele era o meu universo favorito... E por que aquilo não seria uma opção de profissão?
Não sei dizer direito porque (desconfio que tenha algo a ver com a forma como o rock, minha escola, é marginalizado e tratado como sub-música. Mas há vários outros pequenos fatores, que tenho que avaliar mais), mas hoje minha busca por legitimidade quase que não exclui as artes, mas exige que estas sejam coroadas por graduações, especializações. Exige que estas sejam legitimadas por editais, patrocínios, peças profissionais, shows no Sesc. Fora disso, não há legitimidade, diz meu íntimo.
Este pensamento totalmente “tiro no pé” é, além de um equívoco e uma ingratidão imensa com tudo o que já alcancei, uma forma eficaz de se manter no mesmo lugar. A tristeza imobiliza (ao menos no meu caso). Apenas quando acredito que tenho toda a capacidade de alcançar coisas boas, me levanto e vou atrás do que quero.
Posso ser compreensiva em relação a mim e entender que, por já ter colocado muita expectativa em minha carreira musical – mais especificamente, quando eu tinha minha banda de rock, Pic-Nic –, com o tempo acabei me tornando mais madura e menos sonhadora. E isso fez com que eu quisesse, depois, com meu trabalho solo, não uma fama estrondosa, mas uma carreira longa e prolífica. Apenas isso. Tudo isso! E digo: é muito bom não colocar expectativas, não sofrer à espera de uma pessoa, um olheiro, um empresário, que o tiraria do limbo e o colocaria em outro lugar bem mais justo, com reconhecimento e grana. É muito bom ter expectativas muito mais relacionadas a desafios pessoais do que a fatores que não posso controlar (como o reconhecimento de terceiros). É incrível saber que continuarei cantando por muito tempo, visto que preciso fazê-lo, independentemente do fato de vender muitos CDs ou não, de me tornar conhecida como cantora ou não. O que não é saudável é esta visão leve sobre o meu trabalho ser, no íntimo, um desmerecimento deste. Não dar valor à minha atividade mais especial. Continuar cedendo à pressão da sociedade, continuar achando que o que faço é um pouco risível, e ao preencher qualquer ficha que pergunte minha profissão, escrever “jornalista” – ironicamente, uma profissão que jamais exerci. E o canto, que me acompanha desde os 16, que fique escondido.
Profissionais da música sofrem bastante esta deslegitimação. Diálogo comum: “Você trabalha em quê?”, “Sou músico”, “Só músico, mesmo?”. Há, como disse certa vez um amigo instrumentista, a impressão de que aquilo que os músicos fazem no palco é uma “brincadeirinha”, que não exige nenhum tipo de preparação prévia. A música seria, na visão de muitos, um hobby, uma diversão; uma atividade que talvez nem deva ser paga, visto que muitas vezes tem este caráter de entretenimento para o público e que parece não ter exigido nenhum esforço de nenhum dos envolvidos. A música está intimamente ligada ao sorriso, às emoções, à mudança de estado de espírito, e isso, que estranho, para muitos não merece grande mérito.
Eu ia terminar dizendo que é relativamente fácil deixar para lá a opinião dos outros, a falta de crédito/respeito de terceiros em relação à profissão de musicista, e que bem mais difícil é lidar com o próprio preconceito com aquilo que se faz. Mas acho que nenhuma destas duas coisas é fácil. Afinal, se para mim, hoje, ainda existe uma busca de legitimação dentro daquilo que faço – como se o meu canto, por si só, não merecesse toda a minha legitimidade, a minha aprovação –, muito provavelmente isso aconteceu porque em algum momento entendi que o que eu fazia e amava não tinha plena aprovação da sociedade.
Espero que depois de escrever este texto, depois de organizar um pouquinho os pensamentos e depois de ter que esmiuçar mais meus preconceitos, eu passe a me respeitar mais como artista e como pessoa, e que esta busca inútil por legitimidade, esta ânsia que nunca será saciada, se torne cada vez menos importante.