quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

São Paulo é uma festa



Sampa aniversariou anteontem, e eu não havia me tocado de que precisava escrever, mesmo que não muito, sobre o que sinto por esta cidade. Minha pouca vivência em SP é inversamente proporcional ao meu fanatismo por este lugar. E depois de ler o texto de Clara Averbuck (“Ei, São Paulo”) e, logo em seguida, ver o clipe de Anna Tréa (“Paulista”), entendi que eu também precisava falar sobre minha admiração por Sampa.
São Paulo é o seguinte: me deixa acesa e me dá frio na barriga. Por quê? Porque é muita expectativa, é muita possibilidade. É muito para a minha cabeça, e eu quero cada vez mais deste muito, como uma viciada que não mede as consequências.
Acho que tudo começou em 2011, quando, voltando de um festival em Jundiaí, o amigo Sandro Dornelles me arrastou para o sarau Lua Nova, na capital (à época, no bar Varal). Depois de ouvir várias pérolas naquela noite (três cantoras interpretando “Coco do coco”, delicioso), em dado momento Renato Braz chegou e, como se sua simples presença já não bastasse, o cara vai e canta “Ipê”, uma de minhas canções preferidas. Entendi que era assim que a coisa funcionava em São Paulo. Entendi que ali havia ambientes onde era possível ir do samba coco ao Belchior, sem preconceitos.
Confesso que o cinza já me fez ficar depressiva no primeiro olhar (pobre SP, a culpa nunca foi sua, o cinza estava dentro de mim). E o engraçado é que hoje este mesmo cinza me preenche. Quando o vejo não me vem mais tristeza; acho-o tão forte, tão necessário para mim, para o mundo... E hoje, ao chegar na cidade, me sinto privilegiada. Me sinto sortuda, como se estivesse ganhando um presente especial. Aproveito qualquer ocasião para poder estar por lá. Crio cada vez mais necessidades, invento qualquer desculpa. Faço qualquer negócio para estar vivendo um pouco do que Sampa tem.
E quero aproveitar ainda mais, muito mais. Tenho sonhado com uma vida dupla. Metade aqui, metade lá. Aproveitando ao máximo esta capital tão efervescente e cheia, que a cada vez que me vê me contagia com mais alguma coisa boa. Alguma canção, alguma peça, algum show, claro, mas, mais do que isso, unovo tipo de pensamento. Uma nova abertura musical, filosófica. Sempre volto com mais uma peça do quebra-cabeça, ou, ao contrário, com um tormento novo, uma questão nova para pensar.
E por todas estas questões novas e possibilidades que sei que virão até mim em qualquer estadia na cidade, ao chegar no Tietê (momento em que sempre me vem a música “Quem é cover de quem”, de Itamar Assumpção, na cabeça - ele é a voz que inconscientemente escolhi para representar esta cidade) sinto uma ansiedade boa. E também andando pela Paulista, à noite, sozinha; ou de tarde, acompanhada. Vendo casais gays de mãos dadas na Augusta. Andando pelo Centro Histórico, conhecendo a Biblioteca Mario de Andrade, vendo o Metá Metá na Casa de Francisca, ouvindo um choro no Ó do Borogodó, me refrescando no bebedouro do Parque Trianon, vendo a exposição sobre Dona Ivone Lara no Itaú Cultural, a exposição sobre Augusto dos Anjos na Casa das Rosas, vendo e ouvindo Suzana Salles no Teatro de Arena. Uma ansiedade que não estraga nenhum momento, mas, ao contrário, faz com que eu o viva com mais intensidade, mais sede, aproveitando-o inteiramente. 
Vou deixar a parte mais romântica para o fim, uma graça para quem conseguiu atravessar estes parágrafos melosos. Em junho de 2014 ganhei um par de ingressos para o (ótimo) filme Riocorrente, de Paulo Sacramento, que se passa em São Paulo. Por que ganhei este regalo? Porque ao responder à pergunta “qual sentimento eu carrego por São Paulo”, fui sincera, derramada,  quiçá ridícula, mas, de novo, sincera, e minha declaração de amor foi uma das ganhadoras da simpática promoção. É com ela que fecho este texto, que eu já queria ter escrito há muito tempo, para poder espalhar aos quatro ventos que eu, simplesmente, amo São Paulo.
Carrego uma saudade enorme - uma saudade de quem nunca esteve verdadeiramente lá, por muito tempo, por inteiro, e só pôde sentir levemente o gosto da cidade. Carrego esta saudade (misturada com lamento) porque sei que perco muito por não viver esta metrópole: há um universo imenso que certamente me traria muitas delícias, e que, só para me fazer doer, é próximo demais daqui (e por isso me parece tão distante).
Por enquanto, São Paulo é apenas isso: uma grande saudade-lamento.”

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Foi mal aí

Tenho tentado muitas coisas. Contato com pessoas que admiro, trocas musicais com ídolos consagrados, bem como com artistas independentes. Pessoas que não conheço (ou que mal conheço) e que são muito boas no que fazem. Nisso, me toquei do seguinte: é possível, é bem provável, que eu esteja sendo considerada uma chata. É possível que nesta minha tentativa de criar novos laços, de fazer novas parcerias, eu esteja recebendo a etiqueta de pessoa incômoda -- ou eu esteja vestindo esta roupa, depende do ponto de vista.
(Apenas explicando: não chego a grudar, apenas tento uma vez. Se der, deu. Não insisto, pois não gosto que insistam comigo. Mas ao menos uma vezinha eu vou lá e tento.)
E, ao pensar sobre estas minhas tentativas, entendi o seguinte: não importa se vão achar que estou dando em cima. Não importa se vão achar que estou pegando no pé, que estou sendo uma loser que não se toca. Se estou sendo a pessoa mais aporrinhante da paróquia. Por que não importa? Porque, foi mal, gente: tenho que me movimentar e buscar parceiros, a vida é curta, o tempo voa, quero fazer muito, e para isso não dá para ficar me privando de experiências possivelmente bacanas em nome do meu orgulho. Pode até doer caso eu saiba que alguém está me achando inconveniente, mas é dor que dá e passa. Já os resultados bons ficam na memória por muito tempo, mudam a vida para melhor.
Correr atrás de coisas boas, de pessoas que gosto e admiro e com quem quero ter contato implica ser ignorada. Implica ouvir algo diferente do que esperava. Implica não conseguir, ficar triste e frustrada momentaneamente. Mas esta mesma atitude me proporcionará momentos lindos e amizades, músicas novas, encontros inesquecíveis.  E muitas vezes correr atrás das pessoas que gosto e admiro significa conseguir o contrário de tudo isso aí que enumerei. O resultado pode ser exatamente o que eu queria, ou algo ainda melhor, que eu nem sabia que poderia acontecer. Não me guiar pelo ego (pois, segundo este danadinho, nunca se deve ficar na posição frágil, ou seja, naquela de "pedinte", de correr atrás de alguém, de sair do pedestal para olhar no olho) fará com que eu consiga muito. Mas é preciso estar preparada para sofrer. É preciso entender que não é só por ter certeza de que este é o certo a se fazer que, plim! Em um passe de mágica tudo irá se resolver. Não, as pedras no caminho continuarão, e por isso é muito importante estar bem consigo para não desanimar nem se achar um zé mané durante o processo -- processo, aliás, que dura para sempre, pois sempre vou querer novas parcerias. Então é preciso ser forte.
A poeta Mary Oliver fez a provocação "Tell me, what is it you plan to do with your one wild and precious life?". Me pus a pensar, e vi que não pretendo sair frustrada, muito menos ficar viciada em minhas frustrações, remoendo-as com um prazer masoquista. Quero realizar a maioria de meus sonhos (leia-se "planos", se preferir), mesmo que o medo de ser feliz ainda exista. Eu quero que ele vá embora e libere o espaço para as boas oportunidades que surgem volta e meia. 
É preciosa demais a vida, e acho que esqueço disso muito frequentemente. Se não me esquecesse, não me importaria tanto com as pedras no caminho, com as respostas ásperas (que podem, simplesmente, não significar nada além de uma pressa, indisposição ou qualquer outra coisa sem nenhuma relação com a minha pessoa). Não me importaria nem um pouco com as respostas que nunca recebi. Com as desconfianças que posso ter despertado. 
Ser vista como inconveniente e seus derivados é um preço muito pequeno a se pagar para colocar em prática aquilo que quero e preciso realizar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Legitimidade

Há tempos escrevi um texto sobre a minha necessidade de trabalhar como tradutora, revisora e digitadora, paralelamente à minha vida de cantora. No texto eu valorizava esta situação, pois de fato é bom evitar colocar qualquer tipo de pressão na profissão de musicista; é muito bom poder dizer “não” a propostas ruins de trabalho; é muito bom não cantar em casas de shows desonestas, coisa que muitos precisam fazer, pois a única fonte de renda destas pessoas é aquela, a música. No texto falei sobre o lado bom de ter um trabalho paralelo, mesmo que administrar duas funções (ou mais) às vezes seja cansativo, e mesmo que, é claro, eu deseje viver de minha arte.
Avaliei, também, que eu havia mudado e entendido, com o tempo, que não ser cantora exclusivamente não era algo ruim, e talvez nem mesmo me prejudicasse tanto. Na verdade talvez até me ajudasse artisticamente, pois, tendo outra renda, eu poderia fazer na música somente aquilo que eu quisesse. E tempos depois de escrever aquele texto entendi ainda um pouco mais a questão, e hoje penso que a dedicação a atividades distintas não diminui uma pessoa, mas a fortalece, a torna polivalente.
Relembrei deste assunto porque há tempos venho elucubrando sobre algo que, desconfio eu, está implícito naquele texto: a busca pela legitimidade.
A escritora Gretchen Rubin foi a responsável por me abrir os olhos em relação a esta inútil procura. Li seu livro Projeto felicidade ano passado, e uma passagem me chamou bastante a atenção. Gretchen diz: “Eu tenho a preocupação de me sentir legítima.” Neste trecho, um diálogo com sua irmã, a autora fala sobre sua dificuldade de se definir como escritora, pois isso não fazia com que ela se sentisse legítima (leia-se: legitimada pela sociedade – esta foi minha leitura, ao menos). Me identifiquei com esta fala.
Minha busca por legitimidade é um pouco diferente da busca de Gretchen, mas a ânsia é igual. Minha necessidade de me sentir legítima está relacionada à minha graduação – que não é em Música, nem em Artes Cênicas, nem mesmo em Letras, mas em Comunicação; – está relacionada a todos os empregos ruins que tive, trabalhando com coisas que, nem por um segundo, me interessavam (vendas, atendimento ao público). E, por fim, esta ânsia por legitimidade se faz presente quando me sinto diminuída por não ter, hoje, um emprego fixo.
Entendi que, talvez, ao escrever aquele texto eu tenha querido dizer, inconscientemente: não sou apenas cantora. Sei fazer e faço outras coisas.
Acho que eu nunca havia utilizado esta palavra para me avaliar: legitimidade. Gostei de descobrir “o nome da doença” (ha!), porque isso me ajudou a avaliar melhor esta necessidade que criei. Mas ainda resta a dúvida: onde será que surgiu esta vontade de provar algo a alguém? Onde foi que comecei a achar que o que eu fazia não podia ser levado a sério (não podendo ser um caminho a seguir)?
Engraçado lembrar que minha infância foi toda coroada por músicas (principalmente aos 10 anos e com toda força a partir daí), ouvindo-as e cantando-as sem parar, sem a menor dúvida de que aquilo era o que eu mais gostava, que aquele era o meu universo favorito... E por que aquilo não seria uma opção de profissão?
Não sei dizer direito porque (desconfio que tenha algo a ver com a forma como o rock, minha escola, é marginalizado e tratado como sub-música. Mas há vários outros pequenos fatores, que tenho que avaliar mais), mas hoje minha busca por legitimidade quase que não exclui as artes, mas exige que estas sejam coroadas por graduações, especializações. Exige que estas sejam legitimadas por editais, patrocínios, peças profissionais, shows no Sesc. Fora disso, não há legitimidade, diz meu íntimo.
Este pensamento totalmente “tiro no pé” é, além de um equívoco e uma ingratidão imensa com tudo o que já alcancei, uma forma eficaz de se manter no mesmo lugar. A tristeza imobiliza (ao menos no meu caso). Apenas quando acredito que tenho toda a capacidade de alcançar coisas boas, me levanto e vou atrás do que quero.
Posso ser compreensiva em relação a mim e entender que, por já ter colocado muita expectativa em minha carreira musical – mais especificamente, quando eu tinha minha banda de rock, Pic-Nic –, com o tempo acabei me tornando mais madura e menos sonhadora. E isso fez com que eu quisesse, depois, com meu trabalho solo, não uma fama estrondosa, mas uma carreira longa e prolífica. Apenas isso. Tudo isso! E digo: é muito bom não colocar expectativas, não sofrer à espera de uma pessoa, um olheiro, um empresário, que o tiraria do limbo e o colocaria em outro lugar bem mais justo, com reconhecimento e grana. É muito bom ter expectativas muito mais relacionadas a desafios pessoais do que a fatores que não posso controlar (como o reconhecimento de terceiros). É incrível saber que continuarei cantando por muito tempo, visto que preciso fazê-lo, independentemente do fato de vender muitos CDs ou não, de me tornar conhecida como cantora ou não. O que não é saudável é esta visão leve sobre o meu trabalho ser, no íntimo, um desmerecimento deste. Não dar valor à minha atividade mais especial. Continuar cedendo à pressão da sociedade, continuar achando que o que faço é um pouco risível, e ao preencher qualquer ficha que pergunte minha profissão, escrever “jornalista” – ironicamente, uma profissão que jamais exerci. E o canto, que me acompanha desde os 16, que fique escondido.
Profissionais da música sofrem bastante esta deslegitimação. Diálogo comum: “Você trabalha em quê?”, “Sou músico”, “Só músico, mesmo?”. Há, como disse certa vez um amigo instrumentista, a impressão de que aquilo que os músicos fazem no palco é uma “brincadeirinha”, que não exige nenhum tipo de preparação prévia. A música seria, na visão de muitos, um hobby, uma diversão; uma atividade que talvez nem deva ser paga, visto que muitas vezes tem este caráter de entretenimento para o público e que parece não ter exigido nenhum esforço de nenhum dos envolvidos. A música está intimamente ligada ao sorriso, às emoções, à mudança de estado de espírito, e isso, que estranho, para muitos não merece grande mérito.
Eu ia terminar dizendo que é relativamente fácil deixar para lá a opinião dos outros, a falta de crédito/respeito de terceiros em relação à profissão de musicista, e que bem mais difícil é lidar com o próprio preconceito com aquilo que se faz. Mas acho que nenhuma destas duas coisas é fácil. Afinal, se para mim, hoje, ainda existe uma busca de legitimação dentro daquilo que faço – como se o meu canto, por si só, não merecesse toda a minha legitimidade, a minha aprovação –, muito provavelmente isso aconteceu porque em algum momento entendi que o que eu fazia e amava não tinha plena aprovação da sociedade.
Espero que depois de escrever este texto, depois de organizar um pouquinho os pensamentos e depois de ter que esmiuçar mais meus preconceitos, eu passe a me respeitar mais como artista e como pessoa, e que esta busca inútil por legitimidade, esta ânsia que nunca será saciada, se torne cada vez menos importante.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Ser e deixar de ser; se inspirar e se jogar

Vez ou outra digo a alguém: sou careta. Não é exatamente um motivo de orgulho, mas também não penso ser isso uma vergonha. Então afirmo numa boa, e costumo dizer, em seguida, que ao mesmo tempo tento me expandir cada vez mais, ser menos quadrada. Estou mudando, aos poucos. Além disso, adoro constatar coisas sobre mim, e descobri há não muito tempo que falar sobre meus pontos fracos me deixa mais forte.
Bom, e por que me considero careta? Porque ainda me sinto muito presa artisticamente. Ainda não consigo colocar para fora nem um décimo do que gostaria. Ainda não me expresso da forma como desejo. Há ainda muita palavra presa na garganta, há ainda muito o que arriscar. Há ainda receio de possíveis julgamentos. Há ainda dentro de mim muita besteira me impedindo de seguir, livre, o meu caminho. Mas sei que tudo tem seu tempo, e sei que este período vai passar, dando lugar a outro. Me vejo evoluindo, aos pouquinhos, e sempre razoavelmente consciente dos meus atos e das minhas amarras.
E entendo, também, que sou muito mais careta em minhas ações artísticas do que em minha filosofia de vida. Na verdade, em meu cotidiano não me considero careta. Posso dizer que tenho uma boa compreensão sobre a diversidade da vida e não me choco muito facilmente com as diferenças. Na verdade, amo os contrastes. Hoje em dia sou assim. Depois de muito tempo convivendo com pessoas-chave, fui examinando meus preconceitos, e eles não passam mais impunes por minha mente. Os detecto rapidamente, quase sempre entendo porque estão ali e então tento transformá-los. Até os preconceitos que não são tão condenados, de forma geral, como o preconceito contra intelectuais (isso aí era recalque, e já mencionei isso em um texto) ou pessoas ricas (talvez seja recalque também), eu consegui quase que eliminar, mesmo que tardiamente. Também são preconceitos e também faziam com que eu me afastasse de várias pessoas; faziam com que eu fosse injusta.
Digo isso para ilustrar melhor o seguinte: é a ousadia de fazer que está me faltando. Porque a timidez está sendo mais forte do que a vontade de realizar minha arte da forma que quero e necessito. Estou deixando a inibição falar mais alto, e isso é algo sério (principalmente para um artista) e precisa ser resolvido. Mas, felizmente, minha cabeça está bem aberta. Gosto das transformações pelas quais o mundo tem passado. E creio que agora seja a hora de aceitar que posso, como o mundo, mudar e me transformar também.
O curioso é que exatamente por ser eu ainda muito inibida, tenho ídolos que são os maiores adeptos da “sejogância máxima” [copyright Suely Mesquita] deste mundo. Amo David Byrne e Fred Schneider, por exemplo. Estes dois representam a ousadia, a facilidade de sair do lugar comum, a liberdade extrema ao compor, ao interpretar, que eu tanto almejo. André Abujamra é outro que em todos os seus trabalhos me surpreende. Também admiro demais Amanda Palmer, seu discurso, suas letras, sua atitude combativa. E por alguma razão louca sempre pensei que não poderia me inspirar minimamente em figuras como estas. Pensava haver um lugarzinho certo, ali, onde eu me encaixava, bem distante daqueles que admiro. Não poderia nem me aproximar destes artistas, quanto mais usá-los como referência. Mas há alguns meses percebi que eu posso, sim pegar o que acho que há de mais bonito naquele artista incrível. Posso pegar um tiquinho da forma escrachada de escrever daquele ali. Posso pegar a cara de pau daquele outro. Posso pegar a delicadeza do fulano e misturar com a força do sicrano. Adquiri esta consciência. Falta vencer a dificuldade de colocar isso em prática.
Acho que finalmente entendi que não tenho o que temer. Porque o resultado do que eu fizer inspirada em meus ídolos não ficará igual a nenhum deles. Uma vez que o ingrediente “eu” for acrescentado, a receita, quando pronta, não terá o mesmo gosto de nenhum deles. Será uma mistura de vários elementos aliada à minha voz, à minha interpretação, unidas em uma composição feita por mim (ou não).
Acho que sempre tive medo das influências, sempre tive receio de copiar, sempre tive receio de ter referências demais e até acabar plagiando sem querer. Esta quantidade grande de medo infelizmente não me tem sido muito útil, em vários aspectos.
Percebi que me via como se eu não pudesse escolher como quero me expressar. Como se houvesse algo místico me guiando, independentemente de minha vontade. Exemplo: se tenho tendência a ser melosa, ferrou, não conseguirei escapar disso. Que cilada! Não penso mais assim. Se não gosto do meu lado melosa, eu posso e devo mudar. E se gosto, devo assumi-lo. Mas se for apenas um resquício de algo que já fui e não sou mais, não faz sentido ficar sofrendo, me expressando através de uma linguagem que absolutamente não me traduz.
(Aliás, há tempos Suely Mesquita – de novo ela – replicou um texto muito bacana, de David Cain, chamado “A pessoa que você costumava ser ainda dita o que você faz”. O texto, curiosamente, começa abordando a questão do gosto musical para exemplificar os lugares nos quais nos colocamos, estanques, sem perceber que podemos transitar por onde quisermos; basta para isso que nos questionemos.)
Outra possibilidade interessante – para mim e para quem mais se sentir desta forma, preso a uma fórmula, a um jeito de ser, a uma sina inventada – é avaliarmos se, de fato, somos sempre de um só jeito. Eu, ao menos, tenho certeza que em algumas situações sou a mais solta, a mais ousada. Em outras sou a mais quietinha. Em alguns dias sou a que mais dança na festa. Outros dias, a que passa a festa toda conversando. Não existem lugares fixos. Acho que só existem se quisermos. E eu não quero.