sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Legitimidade

Há tempos escrevi um texto sobre a minha necessidade de trabalhar como tradutora, revisora e digitadora, paralelamente à minha vida de cantora. No texto eu valorizava esta situação, pois de fato é bom evitar colocar qualquer tipo de pressão na profissão de musicista; é muito bom poder dizer “não” a propostas ruins de trabalho; é muito bom não cantar em casas de shows desonestas, coisa que muitos precisam fazer, pois a única fonte de renda destas pessoas é aquela, a música. No texto falei sobre o lado bom de ter um trabalho paralelo, mesmo que administrar duas funções (ou mais) às vezes seja cansativo, e mesmo que, é claro, eu deseje viver de minha arte.
Avaliei, também, que eu havia mudado e entendido, com o tempo, que não ser cantora exclusivamente não era algo ruim, e talvez nem mesmo me prejudicasse tanto. Na verdade talvez até me ajudasse artisticamente, pois, tendo outra renda, eu poderia fazer na música somente aquilo que eu quisesse. E tempos depois de escrever aquele texto entendi ainda um pouco mais a questão, e hoje penso que a dedicação a atividades distintas não diminui uma pessoa, mas a fortalece, a torna polivalente.
Relembrei deste assunto porque há tempos venho elucubrando sobre algo que, desconfio eu, está implícito naquele texto: a busca pela legitimidade.
A escritora Gretchen Rubin foi a responsável por me abrir os olhos em relação a esta inútil procura. Li seu livro Projeto felicidade ano passado, e uma passagem me chamou bastante a atenção. Gretchen diz: “Eu tenho a preocupação de me sentir legítima.” Neste trecho, um diálogo com sua irmã, a autora fala sobre sua dificuldade de se definir como escritora, pois isso não fazia com que ela se sentisse legítima (leia-se: legitimada pela sociedade – esta foi minha leitura, ao menos). Me identifiquei com esta fala.
Minha busca por legitimidade é um pouco diferente da busca de Gretchen, mas a ânsia é igual. Minha necessidade de me sentir legítima está relacionada à minha graduação – que não é em Música, nem em Artes Cênicas, nem mesmo em Letras, mas em Comunicação; – está relacionada a todos os empregos ruins que tive, trabalhando com coisas que, nem por um segundo, me interessavam (vendas, atendimento ao público). E, por fim, esta ânsia por legitimidade se faz presente quando me sinto diminuída por não ter, hoje, um emprego fixo.
Entendi que, talvez, ao escrever aquele texto eu tenha querido dizer, inconscientemente: não sou apenas cantora. Sei fazer e faço outras coisas.
Acho que eu nunca havia utilizado esta palavra para me avaliar: legitimidade. Gostei de descobrir “o nome da doença” (ha!), porque isso me ajudou a avaliar melhor esta necessidade que criei. Mas ainda resta a dúvida: onde será que surgiu esta vontade de provar algo a alguém? Onde foi que comecei a achar que o que eu fazia não podia ser levado a sério (não podendo ser um caminho a seguir)?
Engraçado lembrar que minha infância foi toda coroada por músicas (principalmente aos 10 anos e com toda força a partir daí), ouvindo-as e cantando-as sem parar, sem a menor dúvida de que aquilo era o que eu mais gostava, que aquele era o meu universo favorito... E por que aquilo não seria uma opção de profissão?
Não sei dizer direito porque (desconfio que tenha algo a ver com a forma como o rock, minha escola, é marginalizado e tratado como sub-música. Mas há vários outros pequenos fatores, que tenho que avaliar mais), mas hoje minha busca por legitimidade quase que não exclui as artes, mas exige que estas sejam coroadas por graduações, especializações. Exige que estas sejam legitimadas por editais, patrocínios, peças profissionais, shows no Sesc. Fora disso, não há legitimidade, diz meu íntimo.
Este pensamento totalmente “tiro no pé” é, além de um equívoco e uma ingratidão imensa com tudo o que já alcancei, uma forma eficaz de se manter no mesmo lugar. A tristeza imobiliza (ao menos no meu caso). Apenas quando acredito que tenho toda a capacidade de alcançar coisas boas, me levanto e vou atrás do que quero.
Posso ser compreensiva em relação a mim e entender que, por já ter colocado muita expectativa em minha carreira musical – mais especificamente, quando eu tinha minha banda de rock, Pic-Nic –, com o tempo acabei me tornando mais madura e menos sonhadora. E isso fez com que eu quisesse, depois, com meu trabalho solo, não uma fama estrondosa, mas uma carreira longa e prolífica. Apenas isso. Tudo isso! E digo: é muito bom não colocar expectativas, não sofrer à espera de uma pessoa, um olheiro, um empresário, que o tiraria do limbo e o colocaria em outro lugar bem mais justo, com reconhecimento e grana. É muito bom ter expectativas muito mais relacionadas a desafios pessoais do que a fatores que não posso controlar (como o reconhecimento de terceiros). É incrível saber que continuarei cantando por muito tempo, visto que preciso fazê-lo, independentemente do fato de vender muitos CDs ou não, de me tornar conhecida como cantora ou não. O que não é saudável é esta visão leve sobre o meu trabalho ser, no íntimo, um desmerecimento deste. Não dar valor à minha atividade mais especial. Continuar cedendo à pressão da sociedade, continuar achando que o que faço é um pouco risível, e ao preencher qualquer ficha que pergunte minha profissão, escrever “jornalista” – ironicamente, uma profissão que jamais exerci. E o canto, que me acompanha desde os 16, que fique escondido.
Profissionais da música sofrem bastante esta deslegitimação. Diálogo comum: “Você trabalha em quê?”, “Sou músico”, “Só músico, mesmo?”. Há, como disse certa vez um amigo instrumentista, a impressão de que aquilo que os músicos fazem no palco é uma “brincadeirinha”, que não exige nenhum tipo de preparação prévia. A música seria, na visão de muitos, um hobby, uma diversão; uma atividade que talvez nem deva ser paga, visto que muitas vezes tem este caráter de entretenimento para o público e que parece não ter exigido nenhum esforço de nenhum dos envolvidos. A música está intimamente ligada ao sorriso, às emoções, à mudança de estado de espírito, e isso, que estranho, para muitos não merece grande mérito.
Eu ia terminar dizendo que é relativamente fácil deixar para lá a opinião dos outros, a falta de crédito/respeito de terceiros em relação à profissão de musicista, e que bem mais difícil é lidar com o próprio preconceito com aquilo que se faz. Mas acho que nenhuma destas duas coisas é fácil. Afinal, se para mim, hoje, ainda existe uma busca de legitimação dentro daquilo que faço – como se o meu canto, por si só, não merecesse toda a minha legitimidade, a minha aprovação –, muito provavelmente isso aconteceu porque em algum momento entendi que o que eu fazia e amava não tinha plena aprovação da sociedade.
Espero que depois de escrever este texto, depois de organizar um pouquinho os pensamentos e depois de ter que esmiuçar mais meus preconceitos, eu passe a me respeitar mais como artista e como pessoa, e que esta busca inútil por legitimidade, esta ânsia que nunca será saciada, se torne cada vez menos importante.

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