sábado, 2 de janeiro de 2016

Ser e deixar de ser; se inspirar e se jogar

Vez ou outra digo a alguém: sou careta. Não é exatamente um motivo de orgulho, mas também não penso ser isso uma vergonha. Então afirmo numa boa, e costumo dizer, em seguida, que ao mesmo tempo tento me expandir cada vez mais, ser menos quadrada. Estou mudando, aos poucos. Além disso, adoro constatar coisas sobre mim, e descobri há não muito tempo que falar sobre meus pontos fracos me deixa mais forte.
Bom, e por que me considero careta? Porque ainda me sinto muito presa artisticamente. Ainda não consigo colocar para fora nem um décimo do que gostaria. Ainda não me expresso da forma como desejo. Há ainda muita palavra presa na garganta, há ainda muito o que arriscar. Há ainda receio de possíveis julgamentos. Há ainda dentro de mim muita besteira me impedindo de seguir, livre, o meu caminho. Mas sei que tudo tem seu tempo, e sei que este período vai passar, dando lugar a outro. Me vejo evoluindo, aos pouquinhos, e sempre razoavelmente consciente dos meus atos e das minhas amarras.
E entendo, também, que sou muito mais careta em minhas ações artísticas do que em minha filosofia de vida. Na verdade, em meu cotidiano não me considero careta. Posso dizer que tenho uma boa compreensão sobre a diversidade da vida e não me choco muito facilmente com as diferenças. Na verdade, amo os contrastes. Hoje em dia sou assim. Depois de muito tempo convivendo com pessoas-chave, fui examinando meus preconceitos, e eles não passam mais impunes por minha mente. Os detecto rapidamente, quase sempre entendo porque estão ali e então tento transformá-los. Até os preconceitos que não são tão condenados, de forma geral, como o preconceito contra intelectuais (isso aí era recalque, e já mencionei isso em um texto) ou pessoas ricas (talvez seja recalque também), eu consegui quase que eliminar, mesmo que tardiamente. Também são preconceitos e também faziam com que eu me afastasse de várias pessoas; faziam com que eu fosse injusta.
Digo isso para ilustrar melhor o seguinte: é a ousadia de fazer que está me faltando. Porque a timidez está sendo mais forte do que a vontade de realizar minha arte da forma que quero e necessito. Estou deixando a inibição falar mais alto, e isso é algo sério (principalmente para um artista) e precisa ser resolvido. Mas, felizmente, minha cabeça está bem aberta. Gosto das transformações pelas quais o mundo tem passado. E creio que agora seja a hora de aceitar que posso, como o mundo, mudar e me transformar também.
O curioso é que exatamente por ser eu ainda muito inibida, tenho ídolos que são os maiores adeptos da “sejogância máxima” [copyright Suely Mesquita] deste mundo. Amo David Byrne e Fred Schneider, por exemplo. Estes dois representam a ousadia, a facilidade de sair do lugar comum, a liberdade extrema ao compor, ao interpretar, que eu tanto almejo. André Abujamra é outro que em todos os seus trabalhos me surpreende. Também admiro demais Amanda Palmer, seu discurso, suas letras, sua atitude combativa. E por alguma razão louca sempre pensei que não poderia me inspirar minimamente em figuras como estas. Pensava haver um lugarzinho certo, ali, onde eu me encaixava, bem distante daqueles que admiro. Não poderia nem me aproximar destes artistas, quanto mais usá-los como referência. Mas há alguns meses percebi que eu posso, sim pegar o que acho que há de mais bonito naquele artista incrível. Posso pegar um tiquinho da forma escrachada de escrever daquele ali. Posso pegar a cara de pau daquele outro. Posso pegar a delicadeza do fulano e misturar com a força do sicrano. Adquiri esta consciência. Falta vencer a dificuldade de colocar isso em prática.
Acho que finalmente entendi que não tenho o que temer. Porque o resultado do que eu fizer inspirada em meus ídolos não ficará igual a nenhum deles. Uma vez que o ingrediente “eu” for acrescentado, a receita, quando pronta, não terá o mesmo gosto de nenhum deles. Será uma mistura de vários elementos aliada à minha voz, à minha interpretação, unidas em uma composição feita por mim (ou não).
Acho que sempre tive medo das influências, sempre tive receio de copiar, sempre tive receio de ter referências demais e até acabar plagiando sem querer. Esta quantidade grande de medo infelizmente não me tem sido muito útil, em vários aspectos.
Percebi que me via como se eu não pudesse escolher como quero me expressar. Como se houvesse algo místico me guiando, independentemente de minha vontade. Exemplo: se tenho tendência a ser melosa, ferrou, não conseguirei escapar disso. Que cilada! Não penso mais assim. Se não gosto do meu lado melosa, eu posso e devo mudar. E se gosto, devo assumi-lo. Mas se for apenas um resquício de algo que já fui e não sou mais, não faz sentido ficar sofrendo, me expressando através de uma linguagem que absolutamente não me traduz.
(Aliás, há tempos Suely Mesquita – de novo ela – replicou um texto muito bacana, de David Cain, chamado “A pessoa que você costumava ser ainda dita o que você faz”. O texto, curiosamente, começa abordando a questão do gosto musical para exemplificar os lugares nos quais nos colocamos, estanques, sem perceber que podemos transitar por onde quisermos; basta para isso que nos questionemos.)
Outra possibilidade interessante – para mim e para quem mais se sentir desta forma, preso a uma fórmula, a um jeito de ser, a uma sina inventada – é avaliarmos se, de fato, somos sempre de um só jeito. Eu, ao menos, tenho certeza que em algumas situações sou a mais solta, a mais ousada. Em outras sou a mais quietinha. Em alguns dias sou a que mais dança na festa. Outros dias, a que passa a festa toda conversando. Não existem lugares fixos. Acho que só existem se quisermos. E eu não quero.

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