segunda-feira, 2 de maio de 2016

O violeiro



Eu devia ter uns 14 anos, mais ou menos. Comigo, minha irmã e os amigos Antonio e Thiago. Estávamos no calçadão da praia da Barra, bem em frente à minha casa, e por isso nos sentíamos seguros por lá, mesmo que já fosse alta noite. Ficávamos nós quatro lá, rindo, tocando Nirvana, Blind Melon, talvez Led Zeppelin e sei lá mais o quê ao violão. Sempre rock, sempre um som norte-americano ou inglês. Era o que curtíamos, o que víamos na MTV. Os CDs que comprávamos eram dessa galera aí.
Sempre que nós estávamos com o violão no calçadão, ou em qualquer lugar, aparecia alguém. Era tão certo isso que eu cheguei à conclusão de que quando alguém estivesse triste, se sentindo solitário, resolver o problema seria fácil: bastaria pegar um violão e ir para a rua, pois invariavelmente alguém apareceria para bater papo, cantar alguma coisa, mostrar uma canção.
Acontecia mesmo, e era divertido (às vezes inconveniente, mas geralmente divertido). E nesta noite específica veio um rapaz de seus 38 anos, por aí, e pediu licença para nos ouvir. Ficamos lá e depois, não lembro como, a viola foi parar com ele. Ele deve ter tocado mais de uma canção, mas uma música específica me marcou bastante. Ele tocava muito bem, e falava sobre enforcar o pescoço da viola (e o fez enforcando mesmo o pobre violão, bem embaixo da mão do instrumento), e tocava, emocionado, versando sobre amor, dinheiro não.
Lembro dele falar, entre uma das canções, sobre música brasileira. Sempre muito respeitoso e sem invadir nosso espaço, ele, entre outras coisas, disse: “acho que precisamos valorizar o que é nosso.” Eu não entendia quase nada de MPB que não fosse Jorge Ben ou Daniela Mercury — dois artistas que, naquela época, eu já nem ouvia mais. E a verdade é que eu não achava que o que era “nosso” fosse tão bacana assim. Não entendia porque é que deveríamos valorizar algo apenas por ser de nosso país. Mesmo que entre os 10 e os 11 anos de idade eu tenha ouvido O canto da cidade, de Daniela, e o álbum (quer dizer: fita) 23, de Jorge, até a exaustão, aos 14 já os estava desprezando. Como se pode ver, eu realmente estava precisando ouvir aquilo que aquela pessoa dizia. Porque apenas muitos anos depois fui entender aquele pensamento. Muito tempo depois aquilo foi reverberar em mim. E engraçado é que, mesmo sem concordar com o que ele disse, nunca esqueci a frase. E nunca esqueci a canção que ele tocou naquela noite, de forma tão interpretativa, como se estivesse em um grande palco, e não mostrando uma novidade para quatro adolescentes usando camisetas pretas.
Este episódio se deu em 1998, pelos meus cálculos. E o bacana foi que em 2010 a história voltou à tona. Estava eu ali, nos Arcos da Lapa, em frente ao Semente, conversando com o amigo Thiago, o mesmo que ficava conosco rindo de qualquer besteira e tocando rock no violão até altas horas na praia, e falamos sobre esta época. Mencionei o dia específico do rapaz que tocou Elomar (agora eu já sabia que aquela linda música se chamava “O violeiro”, que era de autoria do incrível cantador da Bahia, e que havia servido de inspiração para Caetano em “Beleza pura”). E daí a surpresa. Thiago me disse: “Aquele cara era o Fred Eça. Eu o vi várias vezes depois, lá pela Barra.” Fiquei muito feliz que ele não só lembrasse daquele dia, como também soubesse a identidade do cara que falou algo tão importante, que ficou marcado em minha memória.
Hoje em dia sei exatamente do que é que Fred estava falando. Não se trata de valorizar algo apenas por ser fruto de nosso país. Entendo que aquilo ali é parte de nossa identidade, e assim sendo aquilo ali nos explica um pouco mais sobre quem somos.
Quando, em 2008, comecei a cantar como intérprete de MPB na noite, e mesmo antes, em 2006, quando comecei a cantar em um grupo vocal focado em MPB e música afro, eu fui aos poucos me sentindo muito, muito bem. Fui conhecendo um universo tão rico, diverso, tão cheio de detalhes, nuances, tão colorido, solar. E isso foi essencial para minha saúde, para minha alegria, para minha empolgação em cantar. Foi essencial conhecer algo que, como mencionei, me ajudava a decifrar um pouco mais de mim.
E o lance é que aquele som que Fred tocou, antes de qualquer coisa, é bom demais. Não é só “nacional”: é surpreendente, ousado, estranho e belo. Aquele som e muitos outros estão aí para nosso deleite, para nossa alegria. Nada a ver com nacionalismo. Falando por mim, digo que tem tudo a ver com identificação. Com achar um lugar. E também com misturar aquilo ali com o que eu bem quiser, e fazer daquilo mais uma ótima referência, algo para ser usado e abusado. Para ser citado por Caetano ou por mim; algo que podemos e devemos reinventar. Taí. Aproveitemos.
Sou grata ao Fred pelo grande presente musical que nos deu naquele dia. Pelas palavras importantes, que só puderam ser ditas porque ele, felizmente, se sentiu à vontade para trocar conosco. Nós, que parecíamos pertencer a um universo aparentemente tão diferente daquele universo que ele vinha nos trazer, na verdade absorvemos tudo (mesmo que bastante tempo depois).