quinta-feira, 30 de junho de 2016

Fissurando o machismo (com a música)



Há tempos venho querendo falar sobre o machismo na música. Venho pensando em como abordar isso, pois é um papo desagradável e bem delicado. Poderia citar muitos e muitos casos que vivi (alguns até já foram descritos aqui – mas sem a temida palavra “machismo” ser mencionada, que eu me lembre).
Mas me ocorreu algo: eu bem que poderia, por ora, falar exatamente sobre o contrário.
Me peguei pensando no papel importante da música ao combater estereótipos. Ao quebrar tabus.
Quando a música vai de encontro ao sexismo o resultado é lindo.
Porque estes dias me peguei pensando em umas cenas que quebram essa história de “macheza” (taí um conceito bem... ridículo, para dizer o mínimo) com maestria. Lembro-me de ver Gil e Caetano dando uma bitoca de meio segundo na TV. Lembro do frisson que isso causou, se não na sociedade, ao menos na minha cabeça. Eu tinha uns sete anos.
Vejo, hoje, vídeos antigos. Vejo Djavan e Caetano cantando “Sina”, em 1983/1984. Este vídeo me emocionou desde a primeira vez que o vi. Os dois no palco cantando abraçados, e também de mãos dadas em certo momento, em plena comunhão. Já fiquei vendo este vídeo no dia em que foi divulgada uma declaração horrorosamente machista de um político, para lembrar que o mundo também é cheio de momentos delicados e assim poder me curar daquele bode. (Funcionou.)
Penso em uma de minhas canções favoritas do Gil – devem ser umas 20 – e sei que a letra desta é um dos motivos para que eu sempre queira ouvi-la. “Eu passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens / como beijo meu pai (...)”. E continua, enfatizando sua sensibilidade e fragilidade: “Diga a ele que não se aborreça comigo / Quando me vir beijar outro homem qualquer / Diga a ele que eu quando beijo um amigo / Estou certo de ser alguém como ele é / Alguém com sua força para me proteger / Alguém com seu carinho para me confortar / Alguém com olhos e coração bem abertos para me compreender”. Considero muito importante (e bela) esta declaração presente em “Pai e mãe”: eu, homem, preciso de proteção, carinho; eu, homem, beijo outros homens. Parece bobo e talvez pequeno, mas imagine crescer ouvindo coisas deste tipo, seja em música, seja em discurso, ao invés de “homem não chora”, “isso é coisa de bicha” e outras frases tóxicas? Se eu, que sou mulher, tivesse crescido ouvindo frases parecidas com as de Gil, por exemplo, hoje meu trabalho de desconstrução de minhas atitudes machistas seria bem menos árduo.
E que tal “Super-Homem – a canção?: “Minha porção mulher, que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora / É que me faz viver”. Particularmente, não me encanta o elogio ao feminino, mas sim ouvir um homem falando sobre ter, sim, uma porção mulher.
E mais uma do Gil (ok, ele é meu fraco, já admiti isso): em “Tradição”, ele diz que reparava numa garota do Barbalho. E reparava tanto, que acabou reparando no rapaz que ela namorava. “Reparei que o rapaz era muito inteligente / Um rapaz muito diferente / Inteligente no jeito de pongar no bonde / E diferente pelo tipo / De camisa aberta e certa calça americana”.
Quando Caetano diz “Ele me deu um beijo na boca”, ou que retribui a piscadela do garoto de frete do Trianon (pois sabe o que é bom), ou ainda quando faz uma canção para Dadi (o leãozinho que arrasta seu olhar como um imã), ou para Petit (e pede a este que tome a canção como um beijo), isso é fissurar o machismo.
Silva, em seu clipe “Feliz e ponto”, também engrossa este caldo. Ele e mais dois atores protagonizam a história de um trio de amantes / namorados, e Silva se relaciona com ambos (a mulher e o homem). Criou um estranhamento positivo, e fez isso com arte, beleza, amor. E, ainda por cima, a música é ótima. (Grata pela dica, Clara Gurjão!)
Momento papo chato: há um tempinho Fernanda Torres escreveu uma coluna que realmente deu vergonha alheia, dado o grau de machismo de suas palavras. Pouco depois teve que escrever um texto pedindo desculpas pelo chorume. Ok. Daí, para fechar com chave de latão, um artista visual (sim!) escreveu um texto revoltado com as desculpas de Fernanda (ele não a cita em nenhum momento, mas o contexto está bem claro), falando que o artista “não pede desculpas por seus textos”. “O ser humano, através das palavras, desafia o senso comum”, diz ele.
Bem, em primeiro lugar, por que um artista não poderia pedir desculpas? É uma pessoa como outra qualquer, que falha – e, aliás, está muito mais passível de erros, porque em teoria está sempre arriscando. E sua responsabilidade é grande: ele comunica a muitos. Se errar, tem que pedir desculpas, como todos nós – artistas ou não! Fico pensando se em algum momento a pessoa que escreveu este texto odiando a “Mea culpa” de Fernanda Torres pensou que o machismo é pura e simplesmente a expressão máxima do senso comum. Defendê-lo, ou negar sua existência, ou dizer que não atrapalha muito, é simplesmente apoiar o que já está sedimentado. Não sei se existe algo menos ousado e menos artístico do que reforçar o status quo.
Bom, deixando de lado esta galera careta – no pior dos sentidos: é a galera que morre de medo das mudanças que estão acontecendo –, quero dizer o seguinte: estes artistas que citei  (Gil, Caetano, Silva) fazem exatamente o que não se espera que eles, como homens, façam. E, como artistas, nos tiram da zona de conforto. Ousam e nos inspiram. Nos mostram que podemos quebrar regras e pensamentos antigos. Fissuram o machismo com suas artes.
Gosto de pensar em “fissurar o machismo” porque Jon Holloway diz que é isso o que devemos fazer em relação ao capitalismo: fissurá-lo. Criar pequenas alternativas. Nada disso irá extinguir o capitalismo, nem a crueldade do sistema em que vivemos. Mas certamente algumas pequenas atitudes podem mudar nossa vida para melhor. E vejo que alguns artistas tornam nossas vidas muito mais bonitas ao irem (eles sim) contra a corrente e ao terem a coragem de falar do que (ainda, lamentavelmente) causa estranhamento. São pequenos atos que têm grande efeito sobre nós, mesmo que nem notemos, a princípio. E é muito incrível finalmente perceber o quanto a música, de forma sutil, pode nos guiar por caminhos tão mais coloridos, abertos e felizes.
(Este texto não pretende fazer um apanhado de todos os artistas incríveis que fazem este trabalho de “fissura”. A ideia era apenas citar, de forma bem espontânea, as canções que mais me tocam neste sentido.)

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