domingo, 12 de junho de 2016

Eu me transformo em outras


              Há alguns dias o – maravilhoso – compositor Roque Ferreira fez um ataque furioso a Zélia Duncan. Foi uma fala muito estranha e sem sentido, mas que, pelo menos, gerou uma resposta brilhante de Zélia (porque, afinal, quase tudo tem um lado bom).
Explicando rapidamente: Roque, baiano do Recôncavo, grande nome do samba de roda e da música brazucafro, se recusou a disputar com Zélia a categoria Melhor Álbum de Samba, dentro do Prêmio da Música Brasileira. Zélia lançou em 2015 o CD Antes do mundo acabar, só de samba, e isso fez com que o compositor concluísse que “ela não é sambista, é oportunista”. Chamou Zélia de roqueira, mostrando grande preconceito com este gênero musical e grande desconhecimento sobre a carreira da cantora. E mostrando que, em sua visão, quem “é” de um estilo musical jamais poderá “ser” de outro. Triste, mas verdadeiro.
Eu, daqui, fiquei espantada e ao mesmo tempo fascinada com este episódio. Espantada porque quando um artista do quilate de Roque Ferreira fala uma coisa dessas, o que fazer? Eu me sentiria muito mais frustrada com uma bordoada dele do que com o esculacho de um crítico, ou de algum troll de internet. É muito mais difícil lidar com a grosseria e implicância de uma pessoa talentosa e brilhante, admirada por nós, do que por alguém que nem sabemos quem é, ou alguém que não admiramos. E fiquei fascinada porque a reposta de Zélia foi muito boa.
A réplica, publicada também em sua coluna de jornal (título: “Eu não sou eu”), aliás, vale ser lida na íntegra, mas destaco aqui alguns trechos: “Me entristece o que está havendo, pois rótulo é coisa de gente que pensa pequeno, que não olha o céu amplamente (...) Me chamar de roqueira muito me orgulha, mas não me traduz por completo e soa como um triste fundamentalismo musical. (...) Pra desespero de puristas, me sinto feliz de várias maneiras. (...) Sou uma intérprete e canto o que eu quiser, liberdade conquistada com muito suor e trabalho.”
A meu ver este caso só mostra o quão brilhantemente Zélia está levando sua carreira. E, de verdade, eu não fazia ideia do quão abrangente era sua trajetória, não tinha ideia de metade das parcerias sambísticas que ela cita no texto (Mariene de Castro, Ana Costa, Mart’nália, Paulinho da Viola, entre outros), e por isso não havia parado para pensar no quanto ela produz, no quanto ela é livre neste sentido. Conhecia o DVD (impecável) Eu me transformo em outras, conhecia seu CD só de gravações do Itamar Assumpção, seu show com Simone, com os Mutantes. Mas há muito mais do que isso, a mulher não para. Vai com todo mundo. Ao ler sua resposta e depois sua coluna em jornal, admirei-a ainda mais, porque estou agora achando que talvez Zélia seja uma das artistas brasileiras que mais se aventure por campos diversos. Encontrei mais uma figura para me inspirar.
Por causa deste episódio lembrei-me também de um trecho do documentário Coração vagabundo, sobre Caetano Veloso. Este afirmara que a melhor música do mundo era a norte-americana, em alguma ocasião que não sei qual foi. Daí uma publicação musical, em uma entrevista com Hermeto Paschoal, trouxe o assunto à tona, e pediu a opinião do instrumentista: “(...) não dá pra ouvir uma bobagem dessa de um cara que nem o Caetano, que como poeta é bom, mas como músico é um musiquinho...”
O documentário mostra a reação de Caetano ao saber deste comentário de Hermeto, e a resposta de Caê é muito boa; mas o que fica, para mim, é o quanto é marcante (para o mal) quando um ataque vem de alguém que gostamos. Caetano não sabia desta posição de Hermeto, e aquilo o deixa surpreso. Deve ser porque este comentário venenoso não parece vir de um cara como Hermeto, que produz tantas belezas. Não combina, parecem duas pessoas distintas: o maledicente e o sensível. Assim como é dissonante que um compositor como Roque chame, injustamente, uma cantora de oportunista. “Um ressentimento que não condiz com a poesia de sua obra… Pra mim, sua fã confessa, uma decepção imensa. Mas, há 35 anos cantando, já aprendi que a beleza de uma obra nem sempre vem aliada à beleza de quem a produz, por incrível que pareça.” Falou e disse, Zélia.
Vejo um grande conservadorismo – ou fundamentalismo musical, como bem disse Duncan – nesta atitude de Roque, e talvez até mesmo um ciúme (será?) por uma “novata no samba” como Zélia Duncan se aventurar por estas praias (coisa que ela já faz há tempos, como explicou). José Maurício Machline, criador do Prêmio da Música Brasileira deu a pista, ao comentar o pedido de Roque para não ser indicado: “O Roque não é dono do samba, nem do Recôncavo, nem de nada, por isso não vou retirar a indicação, temos um regulamento.”
Não sei se realmente Roque se acha dono do Recôncavo ou do samba, mas certamente ele acha que tem mais propriedade sobre este gênero e esta cultura do que Zélia. Do contrário, nunca teria feito este comentário esdrúxulo, nunca teria ficado irritado com algo tão banal – e tão bacana. Afinal, que bom que o samba está vivo, que bom que tantas pessoas gostam dele, que bom que ele é gravado, que bom que fazemos samba e vamos fazer sempre.                                  
Este episódio também me fez lembrar daquela vez em que um grande radialista daqui do Rio disse que eu estava “misturando muito”. Ele ainda não havia chegado a ouvir meu CD, mas, apenas pela minha descrição do mesmo, ele concluiu isso. Esta pessoa é uma sumidade quando se fala em rádio, mas é interessante pensar que, de fato, quem sabe do meu som sou eu, muito mais do que ele. Quem sabe se devo misturar ou não, quem sabe o que é melhor para mim, sou eu. Nem ele, nem Roque, deviam ficar indignados com as escolhas de qualquer artista, pois de nada adiantará. Vamos continuar fazendo, sempre, para desespero dos fundamentalistas.  

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